(Para ler ouvindo Song for our Daughter, da Laura Marling)
Oi, como você tá?
Hoje a pergunta é para você. Você, que também sou eu, a Mariana mais nova; você e todas as suas versões que já deram lugar a outras mas seguem existindo por aqui.
Como você tá? Faz tempo que não conversamos. Pra ser sincera, eu te evito o máximo possível. Quando você aparece nas ruas imaginárias das minhas memórias, eu baixo a cabeça para fingir que não vi, como é de praxe de fazermos com aqueles conhecidos que não queremos cumprimentar. (Todos.) Costumo até mesmo mudar de calçada. Desculpa, não é com muito orgulho que admito isso. Mas do que adiantaria estar te escrevendo uma carta se fosse para mentir?
A verdade é que você tem aparecido bastante pelos cantos, e nem sempre dá para te evitar. Tenho falado muito de você na terapia. Tenho mexido nas suas gavetas trancadas à chave, abrindos os armários que mantêm a bagunça fora da vista, revisitando os momentos mais memoráveis que vivemos juntas. Eu não pedi licença para entrar, eu sei. De todo modo, você, que está tão acostumada a ficar invisível, agora tem os holofotes todos sobre si mesma. E eu, que até te odiei um pouco, confesso, por tanto tempo, agora passo pelas fotos antigas no Facebook ou nos álbuns revelados e só tenho vontade de te abraçar.
Peguei o álbum da nossa festa de quinze anos para folhear ontem. Lembra? Você adaptou as tradições ao seu gosto, como sempre fez, e recebeu tanta que passou até do número máximo de convidados reservado no buffet. Praticamente ninguém faltou, e isso lhe foi uma surpresa. Ainda assim, eu sei, eu me lembro: você estava completamente desconfortável, sentindo-se mais feia do que todas as suas convidadas, sem comer nem mesmo um salgadinho das entradas para preservar o máximo de magreza possível dentro do vestido.
Queria poder te dizer que você é linda, este grande, tremendo clichê que nunca deixou de ser verdade, e que nada disso faz a mínima diferença. Queria te dizer para comer o bolo sem culpa, o bolo que até hoje não sei que gosto tinha. Queria, ainda, te dizer que esse corpo de bailarina que você sempre quis não vai rolar, não vai rolar e ponto; não é como seu corpo - meu corpo - se constitui. Ele tem outras formas, outros desenhos e curvas, e submetê-lo a qualquer um desses sacrifícios é uma tristeza dolorida que você vai lamentar mais para frente. Na verdade, algumas coisas que você tanto detesta (pasme!) vai até acabar gostando depois de um tempo. E vão surgir outras que você vai detestar, não se engane; ninguém se gosta completamente. Faz parte.
Eu sei que você pensa que, se parecesse mais com as colegas da escola, da natação, com as amigas que frequentam sua casa, iria finalmente te surgir uma sensação de pertencimento. Nesse dia você sorria para as fotos, mas também olhava ao redor e pensava em como nem mesmo em sua própria festa, mesmo rodeada de rostos tão conhecidos, você conseguia se sentir parte do todo. Eu queria te dizer que esse sentimento de deslocamento vai perdurar. Ele é seu. Faz parte de você, da sua natureza, da sua energia que é introspectiva na raiz, na essência. Com o tempo, você vai aprender a entendê-lo melhor, e até mesmo a cultivá-lo, a cultivar essa ligeira melancolia que te atravessa como uma névoa quando você se vê nessa posição de observadora invisível. Digo ainda: ela será sua maior força para colocar palavras no papel. Confia.
E antes que eu me esqueça: acho que é tarde demais, mas queria te dizer que você não precisa compensar essa ânsia por pertencer com excelência em tudo. É um modus operandi que você vai aperfeiçoar ao longo dos anos, e sobrou para mim ficar aqui juntando os cacos que restaram desse trabalho tão árduo. (Não estou feliz com isso, como você bem pode imaginar.) A verdade é que algumas faltas simplesmente não se preenchem, e toda essa hiper-realização não se sustenta. Pelo contrário: ela bem que passa a perna na gente às vezes.
Fiquei aqui pensando, enquanto escrevo, que mesmo antes disso, quando ainda era a criança de marias-chiquinhas, você já tentava liderar tudo que acontecia ao seu redor. Quando puxo memórias incômodas na análise, a maioria delas envolve algum tipo de descoberta sobre minhas falhas. Ficar para trás em algo. O menino que eu gostava no colégio e que preferiu minha amiga. Não exceder (atender jamais foi o suficiente) as expectativas de alguém, muitas vezes até mesmo as minhas próprias. A angústia que o não-saber-lidar com tudo isso sempre fez pairar.
Ai. Queria te pegar pela mão e dizer: preserva a sua energia, pequena. Abraça as suas imperfeições. Todas essas escadas que você está fadada a subir são imaginárias, e às vezes nem chegam em lugar algum. Os degraus simplesmente vão se formando, infinitamente em direção ao abismo.
Fico folheando essas fotos todas e tentando seguir esse fio emaranhado até as origens do que te inquietava tanto. Mas não consigo. Deixo essa retrospectiva para a minha analista. De todo modo, eu olho para todas essas Marianas que me sorriem por entre os vincos dos plásticos dos álbuns e pelos vidros dos porta-retratos e tudo que quero é fazer um carinho em todas elas. Sorrio de volta; não consigo evitar. É um sorriso, pela primeira vez, cúmplice.
Eu nunca tinha parado para pensar na importância de fazer as pazes com você. Na verdade, nunca nem tinha considerado que conseguiria te perdoar por todos os anos de desconforto. Mas foi só quando me peguei perdida nesse anarquia de pedacinhos do passado, das Marianas que me habitam e reinam num vasto território, muito mais vasto do que jamais percebi, que entendi que, na verdade, o que eu queria mesmo era pedir desculpas.
Me perdoa por esses anos de negligência. Por achar que eu podia simplesmente continuar subindo as escadas, sem nem olhar para as versões de mim que tropeçaram nos degraus e ficaram para trás. Me perdoa por não te estender a mão. Estou estendendo agora, por meio das palavras, que sempre me expressaram muito melhor do que qualquer coisa. São palavras que custaram a sair, mas saem enfim, palavras que nos trazem para perto e nos permitem dizer uma a outra: eu entendo você. Compartilhamos tudo isso.
Eu te vejo agora.
Um beijo,
Mari
Mariana, lindo texto e quanta sensibilidade. Me em muitos trechos.
MEU DEUS QUE TEXTO LINDO!
Fiquei super comovida porque tenho passado por um processo parecido e tenho encontrado minha eu do passado com uma certa frequência. Me vi muito em tudo que você escreveu.
Coisa preciosa esse texto, obrigada!