Oi, como você tá?
Dá para acreditar que já somos mais de mil por aqui? Eu não sei por que vocês continuam vindo, mas venham. Quando eu comecei a escrever essa newsletter, lá nos primeiros meses do ano, tinha absoluta certeza de que seria lida apenas pelos amigos mais próximos e pela minha mãe (e pelas amigas dela). Agora, além de gente nova chegando constantemente, tenho um monte de textos maravilhosos na minha caixa de entrada: virei fã, leitora e até amiga virtual de autores e autoras nessa pequena bolha incrível chamada Substack.
A verdade é que comecei esses não-telegramas apenas como uma forma de exercitar a escrita pública regularmente, mas o exercício tem ganhado outras proporções nos últimos tempos. A ideia de escrever ficção profissionalmente é um flerte tão, mas tão antigo que nem sei mais quando começou, mas de uma coisa sou convicta: ele tá vivíssimo, evoluindo de flerte a paixão platônica, e a cada sessão de análise eu tenho mais certeza de que é a escrita o combustível que dá sentido à minha vida - e que abrir espaços cada vez maiores para ela é uma necessidade quase que vital.
E por falar em análise, já contei aqui que tenho descido aos sete círculos do meu próprio inferno adolescente nas últimas sessões. Revisitar os desconfortos e memórias que foram suprimidas por uma década inteira não é para ser fácil mesmo, sabemos, mas no meio de toda a anarquia interna que resulta delas, começam a surgir também alguns elementos muito meus, algumas marcas que persistiram, resilientes, com o passar dos anos, e que formam a identidade ainda difusa que tanto busco - e a escrita está bem no centro dela.
Tive meu primeiro diário aos oito anos de idade. Guardei-o por muitos anos. Era uma agenda da Moranguinho, daquelas que têm mais desenhos e adesivos do que linhas para escrever, e eu usava uma caneta-gel de cor diferente todos os dias. Colava pequenas memorabílias da vida, recadinhos das amigas, um papel de bala, um ingresso de passeio da escola; sempre tive essa mania de dar significado aos fragmentos. Com o passar dos anos, fui acumulando outros, que deixaram de ser cor-de-rosa para personificar outras fases; as caveiras e quadriculados quando fui emo; as letras douradas e o brasão de Hogwarts quando fui fanfiqueira; os blocos de notas e edições de bolso quando comecei a fazer anotações no trem e no metrô. A escrita me acompanha desde sempre, é meu marcador temporal; ela puxa meu próprio fio da meada e conecta as Marianas que se sucedem através do tempo.
Recentemente cheguei ao fim de mais um - um Moleskine preto que me dei ao luxo de comprar em um dia de pura ostentação (não vai acontecer novamente). A capa está cheia de marcas de dedos que ficam visíveis na luz e algumas páginas têm manchas de café derramado. Marcas do tempo. Tenho muitos outros aqui para deixar meus rastros. Um caderno que ganhei do meu namorado quando visitamos o Malba; um que ganhei de uma amiga que foi à Romênia; outro que veio de Portugal, presente de outra amiga. Ganhar cadernos já virou quase que uma tradição involuntária, silenciosa, entre os meus. Acho que a escrita é o afeto que mais tenho facilidade em demonstrar, e já nos tornamos indissociáveis, até aos olhos dos outros.
Em I’m glad my mom died, livro que continuo digerindo muito mais do que esperava, Jennette McCurdy traz um pouco de seu processo de reconhecimento de si mesma na escrita. É um processo que ganha força e confronta a sensação de apagamento que a autora experiencia na infância e na adolescência ao atuar, carreira que não escolheu com autonomia. “Através da escrita, eu sinto poder pela primeira vez na minha vida”, ela diz em um certo capítulo. “Eu não preciso dizer as palavras de outra pessoa. Eu escrevo as minhas próprias.”
Encontro um pouco disso no meu processo: na escrita, tenho mais controle e mais consciência da minha própria narrativa. É a minha forma primeira e principal de expressão, a que dá forma e contornos ao que minha voz falada geralmente não consegue concretizar. Ela é meu maior instrumento para processar silêncios e ancorar todas as coisas abstratas e inomináveis que eles contêm, coisas que apesar de inomináveis sempre acabam traduzidas de alguma forma nas páginas diante de mim, e, quando deixam de ser inomináveis, passam a ocupar um lugar menos monstruoso dentro de mim mesma.
É o que mais amo sobre escrever: esse prazer muito específico em simplesmente lançar a caneta no papel e ver no que dá, apostar na serendipidade das minhas próprias profundezas e ver, subitamente, que pedaços desconhecidos de mim ganharam forma nas linhas - e, embora nem sempre seja uma aposta certa, às vezes é, e basta por tudo o que vem daí: reconhecer-me mais inteira do que antes nas palavras que escrevi, muito mais do que jamais me reconheceria no espelho.
Ainda não sei o tamanho do espaço formal que o ato de escrever vai ganhar na minha vida, mas algo me diz que esse flerte vai dar em alguma coisa. Ao mesmo tempo, algo também me diz que, na verdade, ele já deu em alguma coisa. Ontem, hoje, neste exato momento. A escrita já é a bússola que guia meus caminhos desde sempre - e eles não poderiam estar em melhores mãos.
Um beijo,
Mari
Que delícia de texto, como me identifico com suas palavras, Mari! Da escrita para processar silêncios ao Moleskine-ostentação, #tamojunto! 😂❤️
Começar a o dia com esse texto enquanto eu flerto com minhas vontades de escritas é um abraço à distância... Eu comecei aqui tendo seus textos e devaneios como base, Mari.
As palavras possuem um poder gigantesco e, quando colocamos as nossas palavras no papel, é como conversar com a infinidade de nós que reside em cada canto do nosso ser. Obrigado mais uma vez <3