//para ler ouvindo A Burning Hill, da Mitski
Oi, como você tá?
Encontrei no meu histórico do YouTube um vídeo que nem lembrava de ter parado ali; um vídeo que tenho quase certeza de ter sido indicado em alguma das newsletters que acompanho, mas infelizmente não consegui recordar qual. São três minutos de um slam de poesia na Barnard College, onde Lily Myers recita um texto autoral, Shrinking Women, e é sobre esse texto que eu tenho pensado quase que obsessivamente nos últimos dias.
O poema de Myers é sobre - e para - as mulheres que encolhem, mulheres nas quais enxerga a si mesma, a suas ancestrais, a todas as suas espectadoras e interlocutoras. Nelas, a desigualdade de gênero se materializa em relações dolorosas e complexas com seus corpos, com a comida, com o espaço que ocupam, e nós as herdamos, é o que diz a autora; herdamos essas relações tanto quanto herdamos uma mania, um hipotireoidismo, um colesterol alto, a habilidade de dobrar a língua, tanto quanto herdamos um patrimônio de família - são comportamentos quase que intrínsecos a nós mesmas, que assimilamos inconscientemente, para odiar e reproduzir na mesma medida. À minha frente, na mesa da cozinha, minha mãe sorri com o vinho tinto que toma em um copo milimetrado, ela diz. Ela diz que não se priva / mas aprendi a encontrar nuances em cada movimento do seu garfo.
Myers toca em uma verdade incontornável na qual muitas de nós - senão todas - se veem em alguma medida, com toda a clareza: o desconforto na própria pele e a privação são passados de mãe para filha - enquanto, através da linhagem dos homens, o que se herda é a autorização para o ato de se fazer crescer. Ela diminui enquanto meu pai cresce / A barriga dele se tornou redonda com todo o vinho, todas as noites tardias, ostras, poesia. O encolhimento é um fardo que carregamos adiante, pelo tempo e pelo espaço, pelos ramos da nossa genealogia de mulheres.
Aconteceu o mesmo com os pais dele;
Enquanto a minha avó se tornava frágil e angular o marido dela se inchou com bochechas redondas, um redondo estômago
e eu imagino se minha linhagem é uma de mulheres que encolhem,
abrindo espaço para a entrada de homens em suas vidas
sem saber como ocupá-lo depois que eles as deixam.
Há um léxico temporal que nos acompanha através dos anos, um léxico social, familiar, e desse meu léxico fazem parte algumas palavras que por muito tempo não soube o significado, mas sabia pronunciá-las, imitando-as quando ditas pela minha mãe, pelas suas amigas, pelas tias, pelas mães das minhas colegas. A sibutramina, a anfepramona. A fluoxetina. O femproporex. Eu só fui descobrir a existência da palavra “zênite” durante as aulas de redação para o vestibular, mas “femproporex” é uma velha conhecida. A dieta Dukan. O não aguentar mais comer melão e omelete de claras. A drenagem linfática. O jejum, que para mim sempre foi sinônimo do exame de sangue, e nada mais. Meu pai e os homens de seu círculo, do círculo em que cresci, sempre me pareceram em uma estranha paz com a própria gordura; estranha porque desconheço completamente a possibilidade dessa sensação, dessa chancela para ocupar um espaço largo, em excesso, redondo; as barrigas de chope que podem ser ostentadas como um troféu se assim o quiser. Em minha mãe, onde haveria um troféu, existe um fardo. Em mim, também. Em nós, é sempre puro desleixo.
Não faz muito tempo que disse, na terapia, que me sinto constantemente incomodada com a quantidade de espaço que ocupo. Talvez (com certeza) inevitavelmente influenciada pela estética lastimável dos anos 2000 em meus anos formativos, sempre desejei com todas as forças um corpo de bailarina, magro, ossudo, quase que andrógino, no qual eu pudesse colocar uma calça de cintura baixa sem precisar dizer que a calça de cintura baixa é uma peça horrorosa que nunca deveria ter voltado à moda. Meu corpo, no entanto, é feito de uma estrutura larga, larga nos ombros, nas costas, nos quadris, com mais curvas do que gostaria, o sutiã tamanho 46, a calça sempre em um tamanho maior para entrar nas pernas, visto as roupas e o caimento sempre parece completamente errado. Parece que tudo foi feito para mulheres que ocupam menos espaço do que eu, e a partir do momento em que tomo consciência disso, é como se todos ao meu redor estivessem cientes também.
Ano passado, fiz pela primeira vez um período de jejum intermitente, e a palavra ganhou um novo significado para além dos exames de sangue, finalmente digna de pertencer a todo o léxico do encolhimento. Perdi dez quilos. Perdi medidas em todas as larguras que tanto me angustiam e tive que ajustar quase todas as minhas roupas. A sensação de excesso não diminuiu nem mesmo um centésimo.
A mim, foi ensinada a acomodação.
Meu irmão nunca pensa antes de falar.
Eu fui ensinada a filtrar.
”Como alguém pode ter uma relação com a comida?” Ele pergunta, rindo, enquanto como a sopa de feijão preto que escolhi pelo baixo teor calórico.
Sempre supus que meu incômodo fosse algo exclusivamente corporal, que se encerrava na matéria da qual sou feita, mas confesso que tenho imaginado se não é algo muito maior do que isso. Acho que ele vem, na verdade, desse inevitável lugar cultural em que ainda não nos sentimos completamente autorizadas a uma existência barulhenta, encorpada, visível, perceptível; uma existência com vozes altas, opiniões, gestos abundantes, corpos que têm o direito de crescer.
Releio e-mails no trabalho uma porção de vezes antes de enviar, guiada pelo medo de soar grossa ou mal-educada quando na verdade estou apenas sendo assertiva. Invento desculpas aos amigos e família para contornar e enfeitar os nãos. O não quero. O não estou com vontade. Pare de pedir desculpa, é o que meu namorado sempre me diz, porque é o que faço nas mais desnecessárias ocasiões: pedir desculpas - por dar uma opinião impopular, por mandar um áudio longo demais, por precisar de colo. Às vezes, peço licença até mesmo para escrever. É como se não me sentisse em pleno direito de exercer minhas palavras.
Somos ensinadas a dosar - a comida, o vinho, os gestos, as vestes, o tom de voz. Mas não é no concreto que isso se encerra. Somos ensinadas a dosar as palavras, o intelecto, a vontade, o desejo, o posicionamento. A encolher. A filtrar. A absorver. Pedir licença. É uma rede semântica onde todas as palavras se ramificam de um único caminho: o de diminuir-se. Eu fiz cinco perguntas na aula de genética hoje e todas começaram com a palavra “desculpa”. Me pego constantemente procurando por autorização para ocupar um espaço que já é meu.
Mas ocupo. Hoje, escrevo aqui sem pedir licença ou desculpa nenhuma vez, nem literalmente nem silenciosamente para mim mesma. Assim espero: ocupar mais do que ocupava ontem e menos do que ocuparei amanhã. Fortalecer-me junto das minhas. Onde há espaço sobrando, que o tornemos nosso, no corpo e nas palavras, todo espaço que houver.
Um beijo,
Mari
Uoooow. Que texto! Que profundidade. Mexeu com tudo aqui. Obrigada por isso!
A newsletter da Babi Bom Angelo me trouxe aqui e amei seu jeito de escrever! E, como mulher, não poderia deixar de me identificar com tudo que você relatou. Sigo daqui mirando na autoestima do homem pra quem sabe um dia fazer as pazes com o espaço que ocupo <3