Tal qual a tradicionalíssima capricorniana que sou, tenho horror a descumprir promessas e combinados. E abrir a tela de rascunhos no notebook - sempre vazia - tem sido um lembrete do quanto minha palavra não valeu de nada por aqui nas últimas semanas. Tenho descumprido um combinado comigo mesma, negligenciado a parte de mim que mais evoca minha potência, minha forma de expressão primária e inquestionável - a escrita.
Não adianta - pelas manhãs, meu horário sempre sagrado para escrever, no silêncio de uma casa ainda adormecida, meu corpo pede por se demorar na cama. Minha cabeça, diante da caneta e do papel ou do teclado, viaja para qualquer lugar menos aqui. As palavras se recusam a formar conexões coerentes umas com as outras. O café esfria na xícara, tenho o criminoso hábito de sempre deixar um restinho sem beber, ele esfria e eu desisto, furiosa comigo mesma diante das lacunas que simplesmente não sou capaz de transpor. Ao fim do dia, os obstáculos são outros - me sinto completamente drenada pós-expediente, perdida no mar de cobranças e responsabilidades muitas vezes inventadas por mim mesma, e só consigo pensar em fazer a coisa mais braçal possível: chutar o saco de pancada na academia.
A verdade é que tenho estado imersa, quase que soterrada, em um hiato mental que cortou toda e qualquer conexão minha com as palavras, que podemos gentilmente nomear de crise existencial; quando dei por mim, me vi em um ciclo interminável de nuggets do McDonald's (com molho Ranch e arrependimento), negronis e músicas do Ultraviolence, da Lana del Rey, um combo que também é a perfeita epítome desta minha versão sad-girl-capenga, e acredito que isso fale mais sobre meu estado emocional do que qualquer outra explicação. Não é uma desculpa ou justificativa para a minha ausência, veja bem; acho que meu erro inicial foi estabelecer uma frequência obrigatória para algo que sempre me foi tão carnal e intuitivo, minha parte menos racional de todas (mas isso não quer dizer muita coisa).
Essa Crise Existencial, que tratarei a partir de agora com letras maiúsculas pois merece ser minimamente personificada, tem deixado rastros de caos nas minhas relações, na minha saúde e na minha criatividade. Por que não deixaria nas palavras? Ela é insistente, barulhenta, comprime meu peito por entre os vãos da caixa torácica, e em defesa dela (sim) não é como se não tivesse avisado que viria - avisou, e eu só optei por não ouvir, como é de costume. Ela forma nós que descem aos trancos pela minha garganta, completamente insolúveis, eles preenchem minhas entranhas e tiram minha fome, o estômago sempre o primeiro órgão em mim a reagir a qualquer coisa; eu vou comendo cada vez menos nas refeições, esperando que talvez em algum momento eu diminua a ponto de caber nesse monte de caixas invisíveis que se amontoam ao meu redor.
Fazer caber. E pensar que, da última vez que apareci por aqui, era exatamente disso que estávamos falando. Dia desses comentei na análise que estou passando por um período de falta de apetite e como consequência emagrecendo rapidamente, mas que voltar a comer normalmente me apavora - quero preservar meus quilos perdidos quase como se preserva uma relíquia. Não quero que minhas roupas voltem a apertar, acrescentei, e eu tenho muitas que apertam. Ela me perguntou por que escolho tantas roupas que apertam, e eu não soube o que responder. “Onde você está tentando se fazer caber? Onde você realmente quer caber?”, continuou. (Eu nunca sei o que responder a ela, por via de regra.)
No afrouxo das roupas outrora apertadas, me sinto menos vista, protegida do escrutínio dos outros, mas sempre angustiada, em busca de diminuir ainda mais; não é suficiente. No fim das contas, eu só queria me sentir confortável dentro de algo que, desde o início, me cabe em qualquer tamanho; quando minha analista me perguntou qual é minha peça de roupa favorita do armário, não hesitei em responder: minha extensa coleção de camisetas de banda, antigas e todas extremamente largas, onde não preciso me esforçar para entrar.
A verdade é que tenho trilhado um verdadeiro caminho com esse tema, com curvas e bifurcações e trechos esburacados, mas enxergo agora com um certo ineditismo o quanto de mim reflete essa incessante busca por ser menor do que sou, literal e figurativamente, por passar despercebida, quase mínima o suficiente para escorrer por entre os dedos das pessoas, e ela pouco tem a ver com a comida no meu estômago. Enquanto doso as porções de salada no prato, doso ainda mais o volume da minha voz na mesa do bar, a intensidade das minhas risadas, da minha presença em sua totalidade. Tento, em um esforço excruciante, chegar à perfeita versão customizável de mim mesma, a versão que finalmente seria adequada. Ajusto tanto os meus tons e expressões que acabei por me desligar até mesmo da palavra escrita, minha maior aliada. Reconheço a armadilha e caí nela.
Dia desses, fui tomada por um pânico silencioso (e quase cômico) enquanto um casal de amigos contava sobre os filhos que planejam ter a partir do ano que vem. Fui a cinco casamentos durante o ano e em todos eles vivenciei algum tipo de angústia, um sufoco, uma claustrofóbica vontade de fugir. Talvez alguns degraus dessa escada não sejam para mim, é o que começa lentamente a bater, e isso me apavora; a tal da versão-customizável-adequada parece cada vez mais distante. Estar nessas situações me causa um desconforto quase que idêntico ao aperto das roupas que não me cabem, um constrangimento a la Frances Ha, e, tal qual a própria, quanto mais me obrigo a me adequar dentro desses contextos, mais deixo de me sentir uma pessoa real.
Talvez, agora, no meio desta senhora Crise Existencial, começo a me perceber maior que as caixas metafóricas da vida onde teimo em me enfiar. Onde você quer realmente caber? A pergunta da minha analista ressoa, insistente, no fundo dos meus ouvidos. Pela primeira vez em muitas semanas, me encaro no espelho sem esforços para filtrar nada, me encaro com uma certa gentileza e uma suavidade que não costumo reservar a mim mesma, me encaro e me concedo o perdão por estar exausta de criar, destruir e recriar todas essas versões de mim em tamanhos variados, tamanhos adequados para que eu caiba onde for. E se eu simplesmente não coubesse e pronto? Subitamente, eu, grande planejadora que sou, começo a me ver seduzida pelo indefinido, pelas possibilidades em aberto, pelo disforme, por tudo que não é sólido o suficiente para caber nos recipientes que me cercam.
Na academia, um colega de treino comentou, com certo divertimento, que estou sempre brava ou exasperada com alguma coisa; você está sempre transbordando quando te vejo, disse. Tenho (quase) certeza de que não foi um elogio, mas não importa, a rede semântica forma um ciclo completo e é assim mesmo que me sinto: em estado de transbordamento.
Vou te falar, acho que tem muita voz alta, risada cheia e inadequação para soltar por aqui - e espero que não caibam mais em lugar nenhum.
(Credo, que delícia olhar para a página cheia de novo.)
Um beijo,
Mari
A mente humana é complexa em seus problemas e simples nas soluções. Quem sou eu para opinar a respeito de um universo de planetas, galáxias e nebulosas, que existe internamente a cada pessoa. No entanto, lendo seu texto e por ter a liberdade de ler, me sinto com liberdade de opinar. Claro, me tenha como um pequeno grão de areia de um planeta na borda de uma dessas galáxias que mencionei. Mas ..."No afrouxo das roupas outrora apertadas, me sinto menos vista, protegida do escrutínio dos outros"... podem indicar milhares de coisas e situações que talvez analista nenhum conseguisse realizar perguntas que suscitassem respostas esclarecedoras. Diria que além de perguntas dos analistas, seria interessante nós mesmos perguntarmos a nós mesmos, e mais do que nunca, buscarmos a verdade das respostas mesmo que não gostemos delas. A busca interna por respostas é importante, e devemos buscar-la SEM PRECONCEITOS. Sim, eu entendo que em geral não gostamos das respostas, aliás raramente os grãos de areia gostam, no entanto é uma reflexão interessante e muito construtiva. Perguntas como: "Se quero me esconder, significa que me acho notado por alguém, será que sou realmente notado como acho que sou?" ou "Por quê o escrutínio dos outros exerce alguma influencia sobre mim, já que os outros poderão, e de fato acontecem de estarem, passando por crises existenciais tão menores ou maiores que as minhas? " etc etc.
Talvez um bom caminho seja entender e buscar conceitos que temos a respeito de nós mesmos e que estão por trás de nossas pequenas atitudes no dia a dia, sempre tendo como princípio não sermos preconceituosos vemos em nós. Fiquei . Talvez realizar a busca da verdade por trás daquilo que exteriorizamos, as motivações que nos levam a exteriorizarmos como o fazemos no dia a dia. Em geral me parece que, muito embora nos coloquemos como preocupados com pessoas a nossa volta, sempre exteriorizamos e nos preocupamos, não com relação a estas pessoas, nem com "caixas" que "deveríamos" nos encaixar, mas sim com conceitos escondidos que temos de nós mesmos que precisam ser transformados. E muitas vezes conceitos que estão tão escondidos, que precisamos de anos procurando a verdade para nos compreendermos. Enfim. Trabalho árduo, no entanto bem simples. É como quando somos convidados para um churrasco e, para não irmos no churrasco, dizemos que temos outro compromisso, quando na verdade não gostamos de carne. Agora imagine a situação em que o convidado não sabe se gosta ou não de carne? Ou, se sabe que não gosta, não quer assumir que não gosta, porque poderá chatear o anfitrião, o que é uma preocupação legítima, inclusive. Imagine o caminho mental deste convidado decidindo o que o incomoda com este churrasco. Imagine agora que este churrasco acontecesse daqui a 2 anos,. Seriam dois anos de crises e questionamentos até que a data do churrasco chegasse. Quando, na verdade, a solução seria um simples: "Me desculpe, mas não como carne. Posso levar minha comida?", ou "Olha vou te confessar, não gosto de churrasco, mas sinto que deveria gostar, vc me ajuda nesse churrasco a tentar mudar esse meu lado?" ou tantas outras respostas, que desse um caminho pra solucionar o problema e aliviar a caminhada. Note que disse "caminho" para solucionar o problema e não disse "a solução " do problema.
A parte ..."Pela primeira vez em muitas semanas, me encaro no espelho sem esforços para filtrar nada,"... foi uma grata surpresa. Olhar-se no espelho e não se incomodar com o que se vê, é uma conquista. Desde que se olhe no espelho além da maquiagem, além da arrogância e egos que costumam deixar turva a imagem vemos, é uma grande conquista. Parabéns.
Cada vez mais percebo que a felicidade está mais na obstinação em trilhar caminhos que nos melhorem como seres humanos e menos na solução propriamente dita dos problemas. Sim, claro, temos que resolver problemas, mas percebo que a plenitude está mais em curtir o caminho que adotamos para nos melhorarmos como seres humanos. Talvez a felicidade esteja mais relacionada a aprendermos a ser felizes APESAR dos problemas, e não somente DEPOIS de resolvermos os problemas.
Grande abraço e parabéns pelo texto. Não fiquei chateado com o sumiço, mesmo porque sumo de ler os textos de vez em quando tb, rs. Faz parte, afinal não acho que somos um algoritmo pré determinado por nossos desejos.
Obrigada por compartilhar esse texto! Me identifiquei muito, até com o restinho do café na xícara! ❤️