Ultimamente o silêncio tem falhado comigo. Me desconcentra. É estranho.
Começo este texto no primeiro lapso de concentração que me acomete em semanas, ironicamente, sentada a uma mesa da padaria lotada e caótica às oito da manhã. Peço uma xícara de café coado, ele vem adoçado e eu sinto vontade de morrer mas tomo mesmo assim; existe um estudo que correlaciona traços de personalidade psicopata à preferência por café sem açúcar, mas acho que posso viver com isso, tomo a contragosto, submersa nos ruídos ao meu redor. O tilintar de talheres. Copos e canecas batendo sobre os tampos de madeira, sobre o azulejo do balcão. A chapa estalando. O liquidificador rangindo. A atendente do caixa, você quer cpf na nota?, o garçom para o casal na mesa ao lado, requeijão entrada ou saída?, um grupo de caras reunidos atrás de mim com seus omeletes e ovos mexidos, suados da academia ou do crossfit, barulhentos, ruidosos, um deles literalmente sacou uma coqueteleira da bolsa, eu poderia fazer algum comentário depreciativo mas ando perigosamente próxima dessa estética marombeira e não posso realmente falar nada. De todo modo, não vem ao caso.
Ultimamente o silêncio tem falhado comigo. Não consigo andar nem mesmo o quarteirão de casa sem botar música nos fones. Não consigo me sentar no sofá e terminar um capítulo de qualquer livro que eu esteja lendo. Abro o caderno e mal escrevo algumas linhas até que alguma coisa me tire de foco. As abas do navegador se acumulam e eu alterno ansiosamente de uma para a outra, fazendo pedacinhos de mil tarefas e nunca concluíndo nenhuma até que seja absolutamente vital. E eu sei que a culpa é dele - do silêncio. Estrondoso, gritante. Não tenho conseguido ouvir nada no silêncio, ele se sobrepõe a tudo. E eu busco pelos ruídos.
Ultimamente o silêncio tem falhado comigo. Ao invés de me recarregar, ele me bagunça por dentro, me esparrama, mexe nas minhas gavetas. Na última sessão de 2022, disse à minha analista que eu esperava que o próximo ano, no caso, o de agora, fosse menos caótico. Que eu estivesse menos caótica. Ela me perguntou o que é caos e eu não soube responder. Me perguntou, então, o que me faz sentir caótica e eu não soube responder. Descontrole, disse enfim, acho que para mim o caos é descontrole, e ela então me devolveu com outra pergunta, então você quer que no próximo ano as coisas estejam mais no seu controle?
Eu não respondi que sim, mas já sabia que, no fundo, era exatamente isso que eu queria, não respondi que sim porque até para a analista a gente quer teimar em parecer razoável mesmo quando não somos, mas a verdade é que ano passado nada saiu conforme o planejado, eu passei a maior parte do tempo me sentindo uma fraude ou uma impostora, nenhuma meta concluída e ainda assim me pergunto a que essas metas estão me servindo, todas essas tarefas, todo esse barulho, a que me servem além dessa euforia momentânea de uma falsa sensação de onipotência.
Ironicamente, acho que eles me silenciam, o caos não é necessariamente barulhento, e é no silêncio que a minha bagunça tem emergido, essa bagunça que também chamo de descontrole, e que também podemos chamar de vida como ela é, as coisas que escapam às nossas mãos e os planos que mudam de rota e o olhar no espelho e entender que você não está no comando de tudo; no barulho eu me desobrigo a olhar pra isso mas o silêncio me coloca cara a cara com as inquietações, me coloca cara a cara com o meu próprio barulho, e então fico pensando se no fim das contas não sou eu que estou falhando com o silêncio, mas odeio estar errada, entre ser feliz e ter razão escolho sempre ter razão, então é mais fácil culpar o outro lado.
Mas acho que ultimamente eu tenho falhado com o silêncio.
Penso que esses hiatos que tenho mantido por aqui e em tantas outras coisas da vida, nas relações, nas respostas, nos projetos, já são manifestações do meu próprio pedido por silêncio; economizo cada vez mais nas palavras ao outro, ao mundo, palavras que às vezes não deveria economizar, mas jamais reduzo a frequência de palavras que me bombardeiam na via inversa, do outro, do mundo, para dentro de mim. Talvez seja hora de inverter a mão em que esse ciclo prossegue, um pedido muito particular meu que não escutei apropriadamente até agora; um pedido pela ausência de ruídos que me obriga a me reconhecer no caos.
Para 2023 não coloquei meta nenhuma - ouvir minha própria voz no silêncio vai ser suficiente.
Que texto maravilhoso, Mariana! Aliás, a sua newsletter, já assinei. To adorando te ler. Indiquei na minha edição desta semana, que acabei de publicar. Beijo grande.
Teu texto reverberou por aqui ❤