Essa semana me dei conta de que meu último rompante de carisma sazonal, que me acometeu com força no fim de 2022, chegou oficialmente ao fim. Acho que isso já estava para acontecer desde o meu aniversário, na metade do mês, em que cochilei deliciosamente na mesa do bar, mas às vezes a gente tenta se agarrar ao último restinho de sociabilidade que sobrou para ver se serve de algo. Não serviu.
Dessa vez, quem engatilhou meu carisma sazonal foi o combo Copa do Mundo e eleições presidenciais, que finalmente pareceu abrir uma vírgula no meio de uma sentença interminável: o Brasil feliz de novo. Novembro e dezembro foram grandes borrões de esbórnia e contato humano em que servi carisma ininterruptamente, topando todos os rolês que caíram no meu colo, até - especialmente, na verdade - os que eu geralmente recusaria com gosto. Gritei “a gente vai viver pra sempre”, um hino Lorde-esquiano a plenos pulmões no bar durante o segundo gol do Richarlison (ai, a gente era feliz e nem sabia), promovi afters muito trash pelo simples porém nobre objetivo de impedir a bagunça de acabar, bebi gin com energético em mais de uma ocasião (!) e não reclamei (!!), até destravei, em prol de manter as agremiações rolando, uma alter-ego heterotop que não sabia que existia (mas que vai voltar para o fundo do baú, felizmente, pelo resto da eternidade).
O meu carisma sazonal aumenta muito meu nível de simpatia e a minha tolerância às circunstâncias externas, que são naturalmente baixos. No entanto, ele é apenas isso: sazonal. Geralmente, vem com os verões, embalado nas festividades de fim de ano e no meu aniversário, mas mesmo assim nunca dura a estação toda.
Por definição, sempre fui a jovem com fama de idosa inveterada nos meus círculos. Se, em minha falta de carisma não-sazonal, eu já pondero profundamente a bateria social para o final de semana, em dias úteis a ponderação quase não chega a acontecer; há que se materializar uma oportunidade muito imperdível para me fazer colocar em risco as horas noturnas de isolamento, e ela certamente não envolveria gin com energético, nem futebol, nem estabelecimentos que operam com base na comercialização de ambos.
E como parte das honrarias que me concederam este título, durmo cedo, acordo mais cedo ainda, torço o nariz para música alta, tenho uma tendência a tentar resolver todas as dores físicas e angústias existenciais com um líquido quente, seja ele café, chá ou sopa, em qualquer condição climática e, talvez o mais importante, minha parte favorita do rolê (à exceção, claro, das minhas raras aparições carismáticas e inimigas do fim) geralmente é ir embora ou simplesmente não comparecer at all. Rindo. Essa estética de velhice por opção é quase uma brand persona completa.
Não me entenda mal, eu tenho plena consciência de que essa brisa de ser jovem antissocial e velha por dentro está na moda desde Virginia Woolf, ou desde o surgimento do Tumblr, o que preferir; e que a estética sad-girl-introvertida-em-cores-neutras-que-ama-livros-chuva-e-cafés é um tremendo clichê que já teve inúmeros nomes no vórtex das redes sociais, desde o falecido WeHeartIt até as infames e capitalizáveis trends do TikTok.
Em minha defesa, não há como negar que, em certa medida, nenhum de nós está imune a se tornar um apanhado de clichês persônicos da internet, visto que absolutamente tudo pode se tornar uma estética rentável no capitalismo. Você também pode fazer parte dessa tendência, basta ter o suéter oversized perfeito, a franjinha de Zooey Deschanel (estou devendo), a estante de livros abarrotada, Phoebe Bridgers torando no fone de ouvido e o vaporizador de leite da Nespresso para fazer cappuccino. Ou, se você não faz a vibe introvertida, como moi, e prefere investir na sua persona festeira, dá para se montar na party-core, outrora simplesmente nomeada de estética clubber; o segredo é uma porção de vestidos degagê com brilho, preenchimento labial e fotos na balada com o obturador da câmera na velocidade baixa.
Enfim, nada disso vem ao caso. Divaguei.
Sei lá, apesar de estarmos todos presos nessa armadilha social em que personalidade e poder de compra estão sempre irremediavelmente misturados, o ponto a que eu queria me ater (não consegui) não é sobre a estética da coisa, embora ache difícil dizer que no século XXI algo não seja sobre estética; essa trend da jovem idosa da qual me apropriei neste texto, superficialidades à parte, também é sobre algo fundamental que devo me dar o mérito de reconhecer na minha pessoa: esta arte milenar e perdida de respeitar nosso próprio tempo e espaço.
A gente ainda existe dentro de um ecossistema, tanto no macro quanto no micro, que não nos dá muito caldo para aprender a cultivar e proteger um território que seja irrestritamente nosso, e o pouco de noção que a gente vai construindo sobre isso é à base de muita terapia, erros, autoengano e, no caso de nosotros, um adendo especial chamado quarentena, que não nos deu muita opção além de ficar em casa com nós mesmos. Risos. E, ainda assim, estamos tão obliterados por tantos estímulos da hipermodernidade o tempo todo, a obrigatoriedade da comparação, a biscoitagem, os conceitos falsos de sucesso, o medo da solidão, o medo de envelhecer, o burnout à espreita, é tanta coisa que fica difícil de saber quando a gente tá dizendo um sim porque quer dizer sim, ou quando a gente diz um sim querendo por dentro dizer um não, ou quando a gente diz aquele não que sai aos berros ou as lágrimas ou ambos porque já deveria ter saído há muito tempo ou porque simplesmente já chegamos ao conceito moderno de: simplesmente exausta não dá mais.
Dia desses uma amiga me chamou para ir em um rolê bem xovem e, ao invés dos clássicos “inventar uma desculpa para não ir” ou “ir, apesar de”, aos quais geralmente recorreria, eu disse a ela que estava a fim de ficar quietinha em casa, e que portanto ia deixar para uma próxima. Bateu aquele ligeiro medo de que ela fosse me odiar por isso, mas a sua resposta foi nossa, que plenitude, me ensina, e uma figurinha de filhotes de gatos batendo palmas. Tenho outros exemplos recentes não tão bem-sucedidos, e relações que eventualmente se esvaíram diante das recusas, oh well, entendo e respeito, mas é aquele famoso fazer o quê. Olha, acho que tô ficando boa nessa coisa de bancar meus nãos.
E acho que o ponto é esse: eu posso até ter uma bateria social que naturalmente se esgota mais rápido que a de um iPhone usado (e isso diz muita coisa) e que me rendeu uma fama de introvertida antissocial, e posso até mesmo, admito, me aproveitar de suas variações estéticas inventadas na internet para me iludir de vez em quando com a sensação de pertencimento que só o consumo sabe proporcionar, mas todo mundo se beneficiaria da sabedoria (em construção e sujeita a alterações) sobre a própria hora de se recolher. Dizer uns nãos bem ditos nos evitaria uma porção de perrengues que a gente não é obrigado a passar. Ter limite é uma vitória.
Quando eu morrer, se as pessoas ainda colocarem coisas em lápides, e se ainda existir o costume de lápides (vai que né?), quero que fique isso lá registrado: uma mulher que, apesar de exausta, aprendeu a bancar seus nãos.
Pensando bem, acho que isso tem muito a ver com o quanto fiquei às voltas com o silêncio nesses últimos meses, encontrando mais refúgio no caos do que na quietude, incapaz de escutar meus monólogos interiores sem o barulho no fundo; muitas vezes, digo não por estar precisando de tempo e espaço para me ouvir, para me reconhecer em mim, mas a verdade é que também tenho os momentos de aversão ao silêncio, e acho que o carisma sazonal vem como uma ferramenta para tentar me encontrar diante do outro, na socialização, que é tão essencial quanto o recolhimento.
(Penso que, no fim das contas, meu carisma sazonal é apenas carisma, eu também faço aparições carismáticas para mim, eu também reservo bateria para estar comigo mesma, é tudo carisma, mas eu vou continuar chamando dessa forma porque já decidi o título do texto e não vou mudar de ideia)
Enfim. Da minha parte, gostaria de pedir perdão antecipado por todos os nãos que provavelmente direi nos próximos meses, até o próximo rompante de carisma, seja lá quando ele vier, mesmo sabendo que não preciso me desculpar por isso, um passo de cada vez etc etc. De todo modo, por gentileza, continuem me convidando para os rolês - se autorizar a ficar de fora é indispensável, mas também há que se saber fazer presente na bagunça junto dos nossos. Um pouco de droga, um pouco de salada. Viver é coletivo!
Um beijo,
Mari
Como é importante o auto conhecimento de identificar até onde vai o próprio carisma. É saber “aqui está legal e estou me divertindo no momento, mas sei que em meia hora estarei insuportavel. Então bora chamar o uber”
Cá estou mais uma pessoa a se identificar com o que tu mencionou sobre carisma sazonal. E nem só para os rolês presenciais. Publicar no Instagram, mandar mensagem, responder coisas que vi, tudo isso me custa uma energia danada e tem horas que a bateria social simplesmente tá lá plugada na tomada ou tomando um solzinho no inverno enquanto tenta recarregar. E paciência 😅