Desmarginar
#29 - às vezes não sei se amo ou odeio Elena Ferrante por ter me colocado nesse limbo existencial, sabe
(para ler ouvindo Garden Song, da Phoebe Bridgers - desculpa desde já pelo vacilo)
Todas as vezes que leio Elena Ferrante acabo entregue a essa sensação que me acometeu assim que terminei As margens e o ditado: como se estivesse diante de uma energia vital que faltou até aquele momento, diante de uma verdade universal e absoluta que me é revelada e que, ao mesmo tempo em que me renova a fé no ato de ler e de escrever, me faz questionar absolutamente todas as minhas certezas sobre mim mesma e meu papel no mundo. Vibe indescritível.
Veja bem, não vim aqui com a intenção de resenhar nada, nas últimas ocasiões em que tentei elaborar algo profundo sobre alguma leitura recente, dei de cara com a parede e com o tanto que estou enferrujada nisso. De todo modo, o lançamento mais recente da autora é uma coleção de ensaios que nos oferecem um mergulho em seu processo criativo, em sua relação com a leitura e com a escrita e em todas as inquietações que a rodeiam nesse processo. Ferrante recorre à sua experiência escolar com os cadernos de caligrafia, com margens inflexíveis e ditados repetitivos, para personificar seu eu censor e tolhedor na ânsia por ficar dentro das margens figuradas, dos moldes conhecidos e bem delimitados.
A sua escrita foi, por muito tempo, regida pela necessidade de ordem - mas imperou sobre ela o caos que, para a autora, é onde reside a essência dos impulsos criativos: “escrever é, a cada vez, entrar em um cemitério infinito no qual cada tumba espera para ser profanada.”
Ando às voltas com a ficção e com a possibilidade de me profissionalizar na escrita há alguns anos. Minhas pastas do Google Drive são um grande emaranhado de documentos começados com sinopses, construções de personagens abandonados, capítulos não-finalizados, páginas e mais páginas com canetadas virtuais, edições, cortes e acréscimos que, bem, em um português claro, nunca dão em porra nenhuma.
Entra aí um pouco da tal verdade universal que me encontrou nas páginas dos ensaios de Ferrante: sou tão censora de mim mesma que às vezes suprimo minhas palavras antes mesmo de elas chegarem ao papel, mais preocupada com as margens onde preciso me fazer caber do que com ouvir a minha própria escrita instintiva; é uma censura que vai para além das palavras propriamente ditas - às vezes, sinto como se estivesse censurando o meu sonho de escrever por si só.
(O silêncio, o encolhimento, eles ainda vencem - às vezes. Ai, só quem viveu sabe.)
Sei lá. Fico pensando que seria mais fácil ter um sonho mais vida-real, sabe, essa vida-real-que-não-envolve-viver-de-arte, e nem vou entrar no mérito viver-de-arte-no-Brasil porque aí é texto para outro dia, e quem sabe agora no Brasil 2023 haja esperança, mais uma dentre todas as outras esperanças que agora nos permitimos desde primeiro de janeiro - mas esse papo também fica para a próxima. Enfim. A verdade é que eu penso em escrever e não escrevo porque decido que não vale a pena; ou então decido que vale, escrevo e acabo por fazer cortes e edições na minha tomada de decisão, presa nesse limbo entre a tal da vida-real e a esse sonho que teima em permanecer, às vezes eu preferiria que ele deixasse de ser sonho e não fosse mais nada, assim eu poderia viver a vida-real em paz.
Bom, nem importa. O fato é só um: mesmo embora eu seja um tanto quanto metódica e processual para a vida de um modo geral, só sei me ordenar quando escrevo - e só sei escrever em condições de caos. Minhas tentativas de colocar ordem, capricorniana convicta que sou, falham diante desse pedido tão primitivo que grita dentro de mim pela desordem das coisas tal qual as conheço. É na escrita dou vazão e reconheço como parte de mim esse meu eu mais caótico, meu eu falho, inquieto, meu eu sem margens. Meu eu em plena desmarginação.
“Talvez o que me salve - mas a salvação não demora muito a se revelar perdição - seja que, sob a necessidade de ordem, perdurou uma energia que quer atrapalhar, desordenar, desiludir, errar, falir, sujar. Essa energia me puxa ora para um lado, ora para outro. Com o passar do tempo, escrever de fato se tornou, para mim, dar forma a um equilibrar-me/desequilibrar-me permanente, dispor fragmentos em um molde e esperar para desenformá-lo.”
Desmarginação. Smarginata. Quem leu a tetralogia napolitana já é familiar com esse conceito, criado pela autora italiana para descrever a sensação aterradora que assombra a vida da personagem Lila, um sentimento que não tem lugar nos dicionários (mas deveria); a desmarginação é a perda das margens de tudo, de si, do outro, de um conceito, de uma ideia; a violação completa dos contornos físicos e abstratos que tornam o mundo o que ele é.
Para sua amiga e narradora Lenu, Lila descreve a desmarginação como
“se, numa noite de lua cheia sobre o mar, uma massa preta de temporal avançasse sobre o céu, engolisse toda a claridade e destruísse a circunferência do círculo lunar, deformando o disco luminoso e reduzindo-o à sua verdadeira natureza de bruta matéria insensata […]”
Para mim, escrever é a plena definição do ato de me desmarginar. Quando me permito escrever, dissolvo as margens nas quais me obrigo a me manter; quando escrevo, reconheço a desordem que torna meus contornos, e de todo o resto, impossíveis, reconheço a não-linearidade das coisas, eu me reconheço e ponto. Fora das páginas, pertenço um pouco menos. Sei lá, às vezes acho que é um pouco natural a quem se comunica pela escrita como primeira linguagem essa sensação: de deslocamento, pertencendo e despertencendo em um piscar de olhos.
Reconhecer a desmarginação do mundo, tal como a minha própria, me permite transgredir as rígidas margens da página com mais coragem e convicção, e vice-versa. Na escrita, tudo tem uma história atrás de si, nas palavras geniais de Ferrante; “até a minha insurreição, a minha desmarginação, a minha ânsia, faz parte de um ímpeto que me precede e vai além de mim.”
É, acho que não tem jeito. Eu sei e ela sabe: eu e a escrita estamos entrelaçadas, e não há para onde correr desse impulso caótico. Olha, Ferrante, eu culpo você por essa sina, e nem importa que ela já existia antes de eu te ler, vou continuar te culpando.
Enfim. Falei que não ia resenhar e cumpri, mas acho que até dá pra falar que foi profundo. Eu gosto quando termino um texto me contradizendo. Faz parte da minha estilística, espero.
Um beijo,
Mari
Me identifiquei muito. Principalmente com as pastas do Google Drive haha.
Escrever é uma dádiva e um fardo, parece. Uma coisa que tem me ajudado é ver/ ouvir outros escritores falando da relação com a escrita. Aceitar que escrevemos porque é isso que a gente faz mesmo - sem mais - é um baita alívio.
Se você escrever ficção como escreve não ficção, escreve bem demais <3