Selvageria
#30 - encontros do terceirão, fé nas malucas e antílopes sem bando. essa news não é patrocinada pelo Animal Planet (mas deveria)
Terminei “Mandíbula”, romance da equatoriana Mónica Ojeda, presa até a última palavrinha, devorando todas as páginas num mix muito louco de horror-aflição-náusea e até um pouco de dó, mas até agora não sei bem de quem - só tem gente que não presta do começo ao fim. Eu amo um bom livro de terror e tenho amado explorar mais dessas mujeres latinas doidas da cabeça.
Ao início da narrativa, conhecemos Fernanda, aluna de um colégio de elite para moças, que acorda em um cativeiro e percebe que foi sequestrada por sua professora de literatura, Miss Clara. Um dia como qualquer outro. É a partir de seus dois pontos de vista completamente distintos e perturbadores que fazemos uma regressão aos motivos que levaram a esse incrível evento, muito mais complexos e obscuros do que jamais poderíamos imaginar. Moral da história: fé nas malucas. Ou não.
Acontece que o momento de maior terror aconteceu depois de fechar o livro e botar na estante. Foi bem aí que me deparei com uma notificação no WhatsApp de um grupo criado para marcar um reencontro do terceirão do Ensino Médio. O neologismo puts é a única reação possível. Subitamente, meu celular ficou cheio de notificações de pessoas que não vejo e com quem não converso há uns bons dez anos, trocando fotos de turma onde figuravam versões minhas que parecem de outra vida, e o mix de horror-aflição-náusea me invadiu com uma força muito mais real. Aceitas esse prato cheio de ironia?
Verdade seja dita, eu fugi de qualquer coisa minimamente associada ao colégio por todos os anos desde que me formei, e naquele momento me vi obrigada a permanecer cara a cara com as lembranças. Não me entenda mal: eu não passei por nenhum drama drástico, não vivenciei o bullying, ou o luto, ou atos de violência ou outras atrocidades que nos transformam nas versões mais céticas e endurecidas de nós mesmos com o passar do tempo, mas não é sobre isso. O ponto é que foi dentro das paredes da escola do Ensino Médio que colidi com alguns desconfortos existenciais pela primeira vez - estar e me enxergar ali dentro era um grande incômodo que transformou esse período transitório tão importante em uma passagem traumática, mesmo embora eu ainda tenha dificuldades para reconhecer a existência - e a validez - desses traumas apesar de não terem surgido de nenhum evento bombástico.
A verdade é que, se você parar pra pensar, nossos traumas nascem de rupturas psíquicas que podem acontecer basicamente em qualquer circunstância, engatilhadas por qualquer coisa. Risos nervosos e haja terapia.
Há experiências e primeiras-vezes que nos afetam irreversivelmente - a primeira sensação de rejeição, de não-pertencimento, de insuficiência; a primeira traição, a tomada de consciência sobre nossa própria vulnerabilidade. Assim como Fernanda, também estudei em um colégio de elite, e eu, a primeira da classe, mesmo com meu boletim impecável, me sentia rejeitada a maior parte do tempo, tomada por uma sensação de eterna desvantagem por não ser tão desejada quanto outras garotas da turma, por não ter tanto dinheiro, por não ser tão importante dentro daquela dinâmica que nada tinha a ver com notas ou com o futuro, mas sim com o presente, com as relações que estavam se estabelecendo ali.
Em Mandíbula, o calor denso do mangue equatoriano se mistura às tensões entre amigas adolescentes, e subitamente o leitor se vê mais apavorado pela imprevisibilidade cruel de uma garota do que pelas cobras-corais e crocodilos que circundavam a área do colégio. A vida imita a arte, ou a natureza imita a vida, sei lá, me perdi. O lobo alfa (homens, acalmem-se) comanda a matilha, o leão comanda as savanas, e eu muitas vezes me sentia como um antílope desgarrado do bando, exposto e vulnerável. Que fita.
Acho que para mim foi ali, naquele microcosmos de tanta coisa, que eu percebi pela primeira vez que viver em sociedade às vezes se parece com uma grande selvageria, mais do que a própria selva; que o ato de pertencer a uma tribo, especialmente na adolescência, é regido por uma competição com regras silenciosas que não fazem parte dos livros, nem da Constituição, mas que definem quase por inteiro o nosso lugar dentro dessa cadeia alimentar metafórica, e isso me moldou de tal forma que, bem, dez anos depois sigo aqui escrevendo sobre isso (e competindo comigo mesma em competições imaginárias, mas esse é assunto para outro dia).
No fim das contas, pouco importa a minha tomada de decisão sobre esse encontro presencial; o reencontro com a adolescente acuada que ainda mora em mim já está acontecendo desde o momento em que essa trupe ressurgiu na tela do meu celular, e é ele que precisa acontecer. Oi, sumida. Na maior parte do tempo tento reprimi-la, a coitada, em partes porque nunca mandei muito bem na dinâmica da selva então finjo que nunca aconteceu, em partes porque já a negligenciei por tanto tempo que dá até aquela vergonha de compensar pelo tempo perdido agora, igual áudio de WhatsApp que a gente deixa cair no limbo depois de uma semana sem responder. Mas ok, tô aqui me desculpando pelo vácuo.
Enfim. Acho que não me vejo mais como um antílope desprotegido e isso já vale de alguma coisa; gosto de pensar que, hoje, se tivesse que me tornar um animago no meio do mato, seria um lêmure, bem espertinha e discreta, arrasando na sobrevivência em Madagascar.
Quanto mais me vejo enfiando o dedo nas feridas e falando sobre esse não-pertencimento, sobre essa insuficiência, mais sinto que rola uma conexão com meus interlocutores escolhidos, com as pessoas que fazem parte da minha vida hoje e a quem baixei os muros que cuidadosamente construí durante tanto tempo; uma identificação que em algum nível me faz sentir mais acolhida, tanto na versão adulta quanto na versão antropomórfica adolescente-antílope. (Acho que isso passou dos limites) De qualquer forma, espero que você se sinta nesse abraço virtual caso esteja precisando dele. A selva tá cheia de desajustados - e também podemos andar em bando.
(Inclusive, aqui vai uma lista com belíssimas imagens dos animais mais bizarros do mundo - desculpa, mas quem é o leão na fila do pão?!)
Posso dizer que eu amei esse texto? Posso. Por quê? Porque, ironicamente, eu me chamo Fernanda e sempre fui desajustada. Também estudei em escola de riquinhos, era a mais pobre, a esquisita gordinha que usava óculos, aparelho nos dentes e o cabelo vivia na rebeldia (típica "A feia" das novelas mexicanas do SBT).
Mexer com feridas da época da adolescências é complicado. O pior é quando você começa a cavucar e encontra mais traumas do que você esperava encontrar, daí sim, a selvageria começa. Sinto como se eu estivesse em uma caçada infinita comigo mesma. É rir pra não chorar.
Espero que dê tudo certo no seu encontro, caso decida ir. Em qualquer decisão, vista-se de leão e só vai. Como diz Amy Cuddy: Não finja até conseguir, finja até se transformar. (se tornou minha frase favorita nos últimos dias).
PS: Eu escolheria ser uma Fossa, mas acho que estou mais para um Lemming.
PS²: "antropomórfica adolescente-antílope" é a melhor definição que já vi na vida.
PS³: Graças a Deus o tempo passa.
Já estava com Mandíbula na lista de livros para ler, agora vou ter que fazê-lo pular a fila! Adorei o texto!