A partilha só acontece quando há caminho aberto para partilhar.
Ouvi essa frase algum dia desses, não me lembro onde. Talvez tenha sonhado. Mas ela ficou.
Tenho uma sensação recorrente de que não mereço um lugar nesta grande mesa que se estende diante de mim. É como se precisasse de um ingresso que não adquiri para pertencer. Ao meu redor, enxergo apenas pessoas seguras, ordenadas, em posse de um segredo que desconheço. Minha analista me pergunta como me sinto quando compartilho essa sensação com alguém e me dou conta, então, de que nunca o faço. Entre todas as faces do medo, a que mais me assombra é justamente esta: temo que todos saibam que não conheço esse segredo.
Para compensar o não saber, me submeto a um nível tão inatingível de excelência que estou sempre insegura sobre uma porção de coisas, mas constantemente alerta e vigilante para manter minhas incertezas fora de vista.
Então acabo por preferir o silêncio. Prefiro minha versão que se cala, mas corre menos riscos. Não abro minhas portas e janelas e minhas vulnerabilidades permanecem fechadas a sete chaves. Elas borbulham aqui dentro, mas do lado de fora, me esforço para ser impenetrável. E ajo de acordo. Na rede semântica que construí em meu imaginário, algumas palavras andam sempre juntas: barreira, resguardo, proteção. Intangível. Inalcançável. Forte.
Às vezes fico tão submersa no meu próprio empenho em parecer que sei o que estou fazendo da minha vida, que me esqueço de que provavelmente tá todo mundo fazendo o mesmo, mas ninguém quer ser o primeiro a falar.
Mas acontece que a partilha é poderosa.
Ela geralmente não parte de mim (espero poder voltar aqui no futuro, a propósito, para contar que isso mudou), mas já estendo a mão com menos apreensão quando o outro me convida para entrar. Às vezes, é isso mesmo que basta: o caminho aberto para partilhar. Navego ainda incerta nesse território da troca, de me mostrar despida, mas é nele que sou tomada pela clareza de que não há segredo algum para ser descoberto. Estamos todos no escuro da incerteza. Vejo diante de mim o esforço alheio para também esconder seu não saber e me reconheço, finalmente, no outro. Na partilha, vou aos poucos deixando frestas abertas nessas portas e janelas trancadas há tanto tempo. Passo a contemplar o que está por trás delas com olhos menos exigentes e, neste momento, deixa de importar tanto assim o que está às vistas do resto.
Quando opto por não partilhar, construo uma ilusão segura e confortável de que estou blindada dos riscos e incômodos. Mas eles permanecem vivos do lado de dentro. Ao guardá-los, deixo apenas de me enxergar como parte do todo.
Enquanto escrevo estas palavras, penso em todas as edições e hesitações pelas quais passaram antes de se tornar o que são. Às vezes me faltam certezas. Me faltam, sempre, respostas para inúmeras perguntas. Às vezes me faltam até as palavras para articular os textos que vão tecendo minha vida. Mas tenho reconhecido muitos pedacinhos perdidos de mim nesse novo costume de ir deixando as coisas entreabertas: na coragem de me mostrar vulnerável, o não saber é menos ameaçador - e muito menos solitário. “"Nenhum homem é uma ilha”, diz o poeta inglês John Donne, “todos são parte do continente, uma parte de um todo.” Na partilha, me sinto assim: continental. As pontes se erguem, e atravesso. Acho que fica tudo bem.
A minha rede semântica vai se transformando, a dureza dando lugar a outros vocabulários. Sigo tentando trilhar esse caminho imperfeito que me leva de volta a mim mesma.
O poder da vulnerabilidade: TED Talk da maravilhosa Brené Brown, autora do livro A coragem de ser imperfeito. Tudo a ver com o papo de hoje.
Ainda no tema: (não) engole o choro, episódio do podcast Bom dia, Obvious.
Enquanto você duvida da sua capacidade, tem gente se inspirando no seu processo.
1 hora de entrevista com Patti Smith, o ser humano mais genuíno que já andou pela Terra.
#segundou e boa semana!
Partilhar
No filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” tem um diálogo que a personagem fala algo como: está todo mundo fingindo saber o que está fazendo. Estamos todos sempre sem saber, sem alcançar seja lá o que for que gostaríamos, e isso tem sido dolorido por aqui. Não ter resposta e estar no desconhecido me deixa tonta. Ao mesmo tempo abre mil possibilidades. Foi bom te ler nessa segunda ❤️
Tô lendo Só para garotos e aprendendo com Patti a ser mais sincera comigo mesma. Partilhar faz a vida ter algum sentido, insista. Beijo