olá! antes de seguirmos adiante, um aviso: esta pessoa que vos fala está saindo de férias e voltará com um texto novo no dia 10/04.
até lá, espero que gostem da edição de hoje, que é super especial! resolvi trazer para cá alguns pedacinhos de ficção que tenho experimentado escrever. acho que colocar no mundo sempre me ajuda a renovar o compromisso com a escrita. ♡
⏯ para ler ouvindo: Hypochondriac (acoustic), de Fenne Lily
Ela passa por um radar despercebido a muito mais do que o limite de velocidade permitido. A voz do Google Maps avisa fora do timing: radar semafórico à frente. Ótimo. É apressada por definição, mas hoje, especialmente, a pressa já se tornou uma massa amorfa de irritação, e ainda não decidiu para quem direcioná-la: se para o GPS que não funciona, para a legislação de trânsito, para o excesso de gente entuchando a avenida do Estado, para o ex-namorado que não sabe fazer nada sozinho, ou para si mesma, que montou no carro sem nem pensar duas vezes quando ele ligou. Em trezentos metros, vire à esquerda em Avenida Santos Dumont. Ela dá seta e muda de faixa bruscamente, desculpando-se para ninguém em particular.
Não. Em sua defesa, é ao encontro de Jorginho que está indo, o vira-lata caramelo que resgataram de uma enchente há quase exatos cinco anos - é única e exclusivamente sobre ele. Jorginho era uma coisinha minúscula quando o encontraram, desgarrado do bando, uma pata torcida e tremeliques constantes, e devorou de uma vez só o pacote inteiro de petiscos sabor carne assada que compraram a caminho do veterinário mais próximo. Não eram nem mesmo namorados ainda, alguns encontros e borboletas no estômago só ocasionais, mas cuidar dele se tornou uma missão conjunta e maior do que qualquer coisa, e eventualmente acabaram assimilando a inevitável família que se formou ali.
Com o tempo, Jorginho passou a ser uma responsabilidade inteiramente sua, mais uma entre tantas outras que se acumularam sobre os ombros; agora, naturalmente, nada disso importa na partilha da vida: é obrigada a dividir sua companhia e a administrar a saudade que fica na ausência dos seus latidos exigentes.
No rádio, o locutor anuncia um especial de uma hora com hits dos anos 80, e ela aumenta o volume. Se ele estivesse ali, torceria o nariz. Aumenta mais um pouco. Alternavam entre suas músicas antigas e os podcasts de notícias que ele gostava de ouvir, mas a disputa sempre acontecia: era parte do ritual. Quando ela ganhava, ele fazia questão de cantar versões alternativas das letras a plenos pulmões, com falsetes, onomatopeias e palavras que não existiam, até que eventualmente o rádio era desligado pelo resto do trajeto. No farol, ela para o carro e se permite fechar os olhos por um momento enquanto Michael Jackson canta Human Nature, uma de suas favoritas.
A versão original agora lhe parece estranhamente silenciosa, e acaba por desligar o rádio por conta própria.
Em cem metros, você chegará ao seu destino. Não há vagas em vista e ela simplesmente encosta diante da entrada de uma loja de artigos de pesca, o pisca-alerta ligado. Cheguei, manda para ele, mas sem nenhuma resposta, a última mensagem de trinta minutos atrás, o Jorginho tá passando mal, vc vem aqui?, e a chamada de voz que se sucedeu. Da última vez que Jorginho precisou de um veterinário na sua ausência, ele ficou esperando por ela no sofá de casa ao invés de entrar na porcaria do carro e levá-lo direto ao consultório; achei que a gente podia levar juntos, ele disse simplesmente quando ela chegou, um eufemismo para não sei cuidar.
Toca o interfone do prédio. O porteiro enfia a cabeça para fora da guarita e diz boa-tarde, dona Paula, faz tempo que você não aparece. Ela enrubesce. Familiar demais. No dia em que ele foi embora, disse que era melhor terminar “antes de ficarem muito enrolados”, outro eufemismo, dessa vez para contornar o fato de que já estava se enrolando com outra pessoa, ao que ela objetou que já estavam enrolados há muito tempo, um vínculo que merecia seu devido valor. Você dá muita importância para essa história de vínculos, ele respondeu enfim, às vezes a gente só tem coisas e pessoas em comum e ponto.
Lá em cima, ele grita de dentro que a porta está aberta. Ninguém à vista. Ela entra em passos cuidadosos, jamais se despindo da apreensão silenciosa que lhe consome ao estar ali, como se estivesse ultrapassando fronteiras vigiadas. Há uma caneca com um restinho de café sobre a mesinha de centro da sala, o cinzeiro cheio de bitucas de marcas variadas - eu sou um sommelier de nicotina, ele sempre dizia -, uma jaqueta sobre o braço do sofá, seu par de All-Star desbotados sobre o tapete, rastros da energia caótica que ela nunca conseguiu assimilar. Um pôster do Império Contra-Ataca preso de qualquer jeito com fita adesiva na parede. Está meio torto. Ela se pergunta se ele teria se dado o trabalho de comprá-lo ou se teria ganhado de alguém.
Oi, ele diz finalmente, apoiado no batente da porta da cozinha. Veste uma camisa surrada e os cabelos caem sobre a testa, mais indisciplinados do que nunca, um meio sorriso desembaraçado no rosto. Ela responde oi e o encara inquisitivamente.
Jorginho aparece por detrás de suas pernas, manhoso, mas abana o rabo freneticamente quando a enxerga do outro lado da sala. Ela se agacha, e ele corre até ela em passadas frágeis. Oi, meu amor, diz em sua habitual voz de bebê que sempre odiou mas nunca conseguiu deixar de reservar para ele. Faz carinho em suas orelhas caídas. Seus olhos, duas jabuticabas brilhantes, olham diretamente nos dela, e se permite amolecer por um momento.
“Ele parece bem”, diz enfim. “O que aconteceu?”
“Acordou vomitando”, ele responde. “Intoxicação alimentar.”
“Podem ser outras coisas também”, ela diz, e se levanta. “Vamos, ainda dá tempo de pegar o veterinário na clínica, deixei o carro no pisca-alerta.”
“Não, eu já o levei lá”, responde, “foi o veterinário quem disse que é intoxicação alimentar.”
“Mas—”
“Ele tá medicado, relaxa. Vai ficar bem.”
Ela deixa o silêncio cortante pairar por alguns segundos, estupefata. Algo inominável borbulha dentro de si.
“Por que você me ligou, então?”
Ele passa a mão pelos cabelos, incerto.
“Ah, sei lá. Pensei que você ia querer vê-lo.” Me ver. “Ou levá-lo pra casa igual da última vez.” Me levar junto.
Um vislumbre da última vez em que se viram passa pelos seus olhos como uma rajada de enxaqueca. Ela tinha um encontro com um cara do Tinder e se arrumava nervosamente quando ele chegou para deixar Jorginho para o final de semana - atrasado, como de costume. Não se lembra exatamente do pretexto para convidá-lo a subir, mas ele ergueu as sobrancelhas quando a viu, ergueu-as como erguia quando flertavam despretensiosamente nos primeiros encontros, ergueu-as e ela soube, naquele momento, que mais uma vez cancelaria seus planos em nome de uma recaída que já nem podia mais ser chamada como tal. Ele não ficou para dormir, disse que tinha planos, e ela não pregou o olho a noite toda.
Lembra-se, então, do que disse à terapeuta no dia seguinte: já se passaram meses e essa merda de ferida nunca fecha. Ela retorquiu: e por acaso você deixa a ferida fechar?
Ouve-se o chiado de algo no fogão.
“Vem, eu tô passando um café. Você ainda toma com adoçante, né?”
Ela puxa uma cadeira e apoia os cotovelos sobre o balcão da cozinha. O café está forte a ponto de lacrimejar os olhos. Uma tigela com restos de sucrilhos jaz na pia, e a caixa de leite foi esquecida fora da geladeira. Jorginho se enrosca em seus pés e ela lhe oferece um petisco, que ele recusa.
Sente-se cansada, o corpo dolorido, os olhos custando a ficarem abertos; todos os movimentos, todas as reações, todo o cálculo milimétrico de reações que faz diante dele lhe parece subitamente impossível de executar. É sexta-feira e ela está exausta, sexta-feira e todos lá fora indo viver a noite de suas vidas com baldes de cerveja superfaturada, vozes e risadas altas e a promessa de encontros não-planejados que viram história para contar, sexta-feira e só Deus sabe o quanto ela só quer sentir qualquer coisa minimamente familiar, só Deus sabe o quanto seria fácil guiar o café e a conversa de volta para o seu apartamento, que já chamaram outrora de nosso; só Deus sabe o quanto seria fácil ceder ao que não foi dito mas que já se instalou ali, ceder mais uma vez à possibilidade de desordem, à pia com algo por lavar, às bitucas se amontoando no cinzeiro que só ele usava. Jorginho apoiado em ambos no sofá. Qualquer coisa minimamente familiar.
Um nó impenetrável se forma em sua garganta, um embaraço de sentimentos que ainda não soube dar nome, e ela engole em seco.
Uma respiração funda.
“Não vou levar o Jorginho hoje”, diz enfim. Encara o pires à sua frente. “Se ele está bem, digo. Na verdade, preciso ir andando.”
Ele a encara com surpresa por uma fração de segundo, mas dá de ombros quase que imediatamente. “Tranquilo”, responde, e a indiferença revira suas entranhas do avesso. Esvazia a xícara em um só gole, sem erguer-lhe o olhar. Jorginho suspira, dormindo profundamente, e ela beija suavemente o topo do seu focinho antes de sair.
Você dá muita importância para essa história de vínculos. Às vezes a gente só tem coisas e pessoas em comum e ponto.
Ela pensa no quão curioso é um laço desatar de um dos lados e ainda ser chamado de laço.
É só ao chegar em casa que se permite soltar o choro engasgado. Sobre a mesa da cozinha, a ração de Jorginho e as duas garrafas de vinho branco que comprou mais cedo, quando o vislumbre para o final desta noite ainda era outro. Encara indefinidamente a pia vazia, intacta, as louças lavadas no escorredor; as lágrimas correm livremente, os soluços profundos raspam a garganta ao sair. E por acaso você deixa a ferida fechar? Encara a pia intacta, os tênis que não ficam jogados no tapete, a parede sem marcas de fita adesiva, os desenhos abstratos que pintou sobre a tinta branca apenas porque podia, encara com veemência, encara uma e mais outra vez. Deixar fechar. Ausência e presença, às vezes, lhe parecem a mesma palavra.
Da cozinha, observa o facho de luz do fim de tarde sobre a mesinha de centro da sala; nenhuma xícara usada, seu vaso com flores da feira de domingo e um cinzeiro vazio. Uma manta sobre o sofá onde Jorginho gosta de dormir. Os soluços rareiam. Ela alcança uma taça na prateleira sobre a pia, abre uma das garrafas de vinho que comprou e brinda ao inevitável aperto no peito que a faz se sentir tão viva, tão humana. Há uma parte de si que acha estranhamente emblemático que a saudade more tão mais nas miudezas do que no grandioso.
Ao seu redor, um punhado de novas miudezas delineando os contornos do agora, miudezas só suas desenhando silhuetas em uma tela branca e o alívio quase dolorido da descoberta de que também há de se acolher a tristeza.
ai ai doeu aqui pq parece que vc estava contando a minha história hahaha
vc é uma escritora incrível!
"Ele não ficou para dormir, disse que tinha planos, e ela não pregou o olho a noite toda".
Esse texto!!!!
Amei <3