Despretensiosamente 🏆
#36 - fazer o que brilha os olhos não exige talento ou planos mirabolantes
Pretensão. Não importa o quanto eu tente fugir dela, ela sempre me alcança. Me envolve como o canto de uma sereia e, quando dou por mim, já ocupou absolutamente todos os espaços ao meu redor. Tudo que faço implica um ambição, um propósito claro, uma linha reta com início, meio e fim. Há pretensão em cada um dos meus movimentos neste grande tabuleiro de xadrez imaginado.
A pretensão me faz abandonar hobbies e desistir de práticas. Fiz aulas de violão por três anos e, embora coordenação motora não seja o meu forte, admito, eu amava cada um dos meus pequenos progressos, amava cantar no embalo dos acordes, mesmo que desafinada; eventualmente, tomando consciência da minha falta de talento, desisti. A mesma coisa aconteceu com a yoga: abandonei-a ao me sentir intimidada pelos corpos flexíveis e claramente feitos para isso que se misturavam ao meu, desajeitado e limitado. Outras desistências de pequenos prazeres que foram acontecendo diante da dolorida constatação de não ser tão boa em algo: a natação, as pinturas em aquarela, a fotografia.
Às vezes, devo dizer, até a escrita corre esse perigo dentro de mim.
A pretensão reduz minhas ideias a pó. Todas as vezes que me vejo às voltas com uma vontade que foge às minhas habilidades, com o vislumbre de outro mundo possível, com um impulso curioso que me leva na direção de algo impraticável, piso no freio antes mesmo de nos familiarizarmos um com o outro. Se não tenho aptidão para isto, aonde vai me levar? A lugar nenhum, é o que respondo a mim mesma. E se não vai me levar a lugar nenhum, por que perder tempo? Tem razão, melhor não perder. Duas perguntas que, separadamente, já seriam problemáticas; juntas, então, formam um fio da meada que me amarra e me limita.
Eis uma ideia impraticável que me permito, neste momento, vislumbrar: e se a nossa energia simplesmente não precisasse estar atrelada ao talento? E se eu mergulhasse nas práticas que me divertem, sem racionalizar tanto em busca de uma aplicação prática, de um objetivo? E se eu pudesse não ser boa em algo e sustentar esse título com orgulho, ser ruim em algo ainda assim fazê-lo, despretensiosamente, e ponto?
Essa é uma arte a que não dou muita importância, mas acho que deveria. Penso em todas as práticas desinteressantes que levo para frente apenas por possuir algum grau de aptidão para elas, por enxergar nelas alguma serventia; penso nas coisas que me fazem bem e que deixei inacabadas pelo meio do caminho por não ser boa o suficiente para transformá-las em algo útil. Sei lá, nem sei o que útil significa. Não sei por que essa palavra tem tanto peso. Não sei a quem serve esse utilitarismo constante de absolutamente tudo.
Talvez o caminho esteja em reformular as palavras que me contornam: isso é útil para mim ou apenas para as regras do mundo em que existo?
Dia desses, lendo uma edição da newsletter da
- belíssima, por sinal -, me deparei com o link deste vídeo que gosto muito e sempre revisito. Neste momento, às voltas com esse assunto há alguns dias, volto a ele mais uma vez. O mantra do ator e roteirista Ethan Hawke é muito simples: play the fool, banque o bobo. Permita-se navegar pelas bobagens. “Perdemos muito tempo tentando fazer algo que o mundo vai considerar bom ou importante, mas se há algo que a História nos ensinou, é que o mundo é um crítico extremamente não confiável”, ele diz. “Temos um tempo curto demais nessa vida: estamos gastando-o com o que é importante para nós?”Fica aqui, então, o lembrete para mim mesma (e a quem mais vier calhar): as coisas podem - e devem - ter propósito nenhum além da mera curiosidade ou do prazer. Que não nos falte vida para bancarmos os bobos nem coragem para sermos ruins e despretensiosos no que faz o olho brilhar. Existe, afinal, finalidade mais nobre do que essa?
Um brinde (de café quentinho) a isso!
Um beijo,
Mari
Um brinde à coragem e à compaixão necessárias para fazer algo porque queremos, não porque somos boas nisso. Obrigado pelo texto bonito! ☕
Só pra dizer que eu perdi a conta de quantas vezes já li esse texto. Vez ou outra volto aqui. Obrigada por isso.