nas últimas semanas, tenho sentido intensamente os efeitos da fase crucial e transitória que estou vivendo: sair de casa, construir um lar a dois, experimentar as angústias e os prazeres de se enxergar em um lugar de independência. no meu diário, venho escrevendo muito sobre isso para mim mesma. hoje, decidi trazer aqui alguns trechinhos que resumem um pouco do muito que tenho pensado.
░ 8 de abril de 2023
É a primeira vez que eu e Fábio entramos em nosso apartamento após pegar as chaves. O prédio é antigo e silencioso, e a luz entra livremente pelas janelas de todos os cômodos, como eu sempre quis. Fazemos fotos de tudo para mostrar aos amigos, à família, embora não haja nada para mostrar ainda: não temos móveis nem eletrodomésticos, as paredes e portas precisam ser pintadas, a fiação precisa ser trocada por completo. Ainda assim, é a primeira vez que inaugurará uma sequência de muitas outras, e nos damos o direito de registrar qualquer coisa que quisermos. Depois, andamos sem rumo pelo bairro, o bairro que já tomamos como nosso, e cada quarteirão tem um cheiro caloroso de descoberta: as farmácias, os supermercados, a padaria, a estação de trem, o restaurante por quilo na esquina de casa, o bar super descolado que fica a dez passos de distância. Os contornos de um lar.
░ 15 de abril de 2023
Temos muitos orçamentos para avaliar e uma porção de perguntas que nenhum dos dois sabe responder sem pedir ajuda para os universitários. O exercício de abrir mão do orgulho e dizer “eu não sei” é muito novo para mim, e tenho o feito com uma frequência assustadora nas últimas semanas - com uma certa relutância, confesso. Saber, saber e ponto, é um dever que está sempre fervendo nas minhas entranhas, me cutucando por dentro, insistente, e essa maré de saberes desconhecidos me faz pensar nele ainda mais. Às vezes não me lembro de pedir ajuda, mas ela vem mesmo assim. Fábio repete constantemente: divida o fardo. Respiro.
░ 30 de abril de 2023
Na tentativa de ressuscitarmos de uma ressaca extrema, saímos para almoçar e dar uma volta por lojas de artigos domésticos e decoração no shopping, registrando tudo que interessa: a cafeteira para a nossa cozinha, o tapete para o nosso escritório, o espelho para o nosso quarto. Saboreamos o léxico novo que passamos a desenhar juntos, um léxico do plural, pouco familiar, mas já tão assimilado em nossa dinâmica. Percebo mais uma vez que as coisas só se tornam reais para mim quando chegam à linguagem.
░ 02 de maio de 2023
O eletricista envia uma lista de materiais para poder trabalhar no apartamento e, como entendemos pouquíssimo do que colocou ali, meu pai me ajuda com as compras. Eu o bombardeio com perguntas sobre tudo. Sempre nos demos bem, mas me dou conta de que nunca fomos tão próximos quanto estamos agora. Penso nos incontáveis conhecidos que já ouvi dizer que melhoraram as relações com a família após saírem de casa e me pergunto o que acontecerá com as minhas. Acho que alguns vínculos, inevitavelmente, precisam do bater-de-martelo de uma ruptura para se fortalecerem, mesmo que ainda apenas sob a iminência da saudade futura. Me agarro a essa cumplicidade recém-descoberta , com medo que me escape por entre os dedos. Não consigo compreender os desprendidos; tenho um instinto natural de apego, minhas raízes são profundas e cuido delas com afinco. Elas crescem, fortes e corpulentas, em direção ao centro da terra, e constituem algo muito fundamental de quem sou. Pela primeira vez, percebo que aprendi a me gostar assim.
░ 12 de maio de 2023
Minha mãe e eu ficamos em casa sozinhas à noite, com taças de vinho cheias e romances repetidos na televisão. Pergunto: será que essa é a última vez que faremos isso antes de eu me mudar? Ela sorri um sorriso meio dolorido mas não diz nada, e o momento fica encapsulado dentro de mim. Tenho começado a me imaginar no papel de mãe pela primeira vez. Adentrar esse terreno desconhecido vem com um desassossego: tenho um diagnóstico médico que talvez me impeça de gestar e sei que, mais cedo ou mais tarde, vou precisar de coragem para ir atrás de respostas e encarar o que talvez seja uma verdade dolorosa. Mas não agora. Ainda não. Me permito apenas vislumbrar o lugar de mãe, o desejo de poder criar um laço tão poderoso quanto o que me criou.
Ao mesmo tempo, por mais incongruente que isso seja, me sinto mais filha do que nunca.
░ 18 de maio de 2023
Estamos com problemas em uma etapa da obra. Todos dizem: vai aprendendo, é assim mesmo. Quanto mais vou aprendendo, mais eu penso em tudo que eu não sei e mais eu sinto que deveria saber. Parece que consigo ouvir a resposta condescendente ecoando na minha cabeça: você é jovem, vai entender mais para frente. Odeio essa frase com um ódio muito particular. Tenho vontade de gritar: eu sei! Mas não me sinto. Saber e sentir são duas dimensões muito diferentes. Acho que ser jovem vem naturalmente com esse fardo imaginário de triunfo, o ônus de um conquistador em mares desconhecidos que precisam ser mapeados até a última gota d’água. A urgência, a ânsia de saber tudo, de ser tudo, de estar à frente de tudo. Enxergo o quanto não sei, o quanto não sou, o quanto não estou - e, honestamente, às vezes começa a ser um alívio. É essa a verdade misteriosa que um dia supostamente vou entender? Me pergunto se a Mariana do futuro vai poder olhar para trás e dizer: ah, se eu pudesse voltar no tempo e te acalmar. Eu espero que sim. Mas sei que também é sina da existência: preciso viver as ânsias e cometer os erros do meu tempo.
░ 19 de maio de 2023
Fábio e eu vamos fazer uma faxina na cozinha, toda suja com resquícios de pó e pedras, mesmo sabendo que toda a sujeira será refeita muito em breve. Eu esfrego os mesmos azulejos obsessivamente por muitas rodadas seguidas, ansiosa por encontrar qualquer pedacinho de coisa sob o meu controle. Ele me interrompe e estende os braços para me apoiar em si: isso não precisa ser perfeito, diz, e repete sempre que necessário. Interrompemos a faxina na metade e vamos embora tomar uma cerveja, nosso léxico da primeira pessoa no plural ganhando novas aplicações mais uma vez.
░ 20 de maio de 2023
Encho uma taça de vinho e olho pela primeira vez para todas as palavras que juntei aqui, determinada a encontrar um final adequado para o texto, uma amarração sem pontas soltas. Embora essa newsletter seja minha e eu não seja obrigada a dar final nenhum, meu senso estético me impede de deixar isso pra lá. Mas talvez um final não precise se parecer com um; a gente se acostuma a operar na base de inícios e fins, mas acho bonito poder me enxergar na continuidade.
Respirar fundo nem sempre tem sido fácil: meu primeiro impulso sempre foi o de repelir mudanças. Estas raízes profundas se multiplicam pela terra e me fazem sólida, arraigada, mas o frio na barriga também me lembra de que elas crescem e florescem em outras direções. As mudanças, os novos léxicos e os saltos no abismo - todos se ramificando na incompletude que tanto tentei aniquilar e agora abro os braços para receber.
Me lembrou tanto uma música da Legião Urbana que fala muito dessa fase da vida, chama “ O mundo anda tão complicado” e, apesar do nome, juro que é de uma delicadeza grande!
Que news linda! Lembrei de quando me mudei também e acho que você detalhou m🥲com muita beleza as sutilezas da linguagem, das sensações, das inseguranças e certezas desse momento. Aproveite muito, é uma delícia ter uma casa nova. A gente se transforma junto com cada detalhe do espaço. ♥️