1: este texto, assim como o anterior, é composto por trechos do meu diário e devaneios aleatórios que surgem quando faço o exercício da releitura. para mim, que sempre fui uma editora linha-dura ao colocar meus textos no mundo, explorar esse recém-descoberto prazer em me mostrar vulnerável e fragmentária, sem um ponto de partida e uma linha de chegada, tem sido uma coisa muito doida e bonita.
2: este texto também pode conter gatilhos relacionados a transtornos alimentares. se preferir não seguir com a leitura, entenderei sempre. que fiquemos bem.
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Peso-me pela primeira vez após semanas passando longe da balança. Não consigo encarar essa lacuna como uma evolução espiritual, até porque tenho sido terrena demais para canalizar uma dessas - acho que só ando cansada e esquecida, e ponto. Mas ela está lá, a balança, e eu estou aqui, e o espelho me acompanha com olhos inquisidores pelos corredores da casa, esta casa que já começo a não chamar mais de minha, nas vias de deixá-la, mas o corpo ainda é meu e ele vai embora comigo. Ele, que ocupa um espaço que não consigo enxergar como meu, e eu, que em meus músculos e vértebras faço esforços conscientes para encolher. A balança é eletrônica e faz barulhos desproporcionais quando a arrasto para fora do seu lugar, debaixo do armário da pia no banheiro. Eu subo nela em um misto de relutância e conformismo, preparada para os números que destruirão meu dia. E nada. Uma tela vazia. Tiro suas pilhas, troco por novas, e o nada ainda ali. Sento-me no piso frio diante dela e choro pela verdade que ficou suspensa no ar, um eterno paradoxo de Schrödinger encavalado na garganta. No silêncio da manhã vazia, minha respiração irregular toma conta dos meus ouvidos. Com frio, abraço minhas pernas contra o peito, e minha cabeça repousa nos joelhos. É este corpo que sustenta a si mesmo. Prometo baixinho para mim mesma: minha casa, a balança há de ser persona non grata por toda a eternidade.
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Encontro acidentalmente na rua um colega antigo de escola - o primeiro garoto que me beijou. Moramos em uma cidade pequena; os encontros acidentais são uma premissa, e a maioria de nós aprende a desenvolver técnicas sofisticadas para evitá-los no ato. Dessa vez, elas me falham. Vou descendo a rua pela calçada, e ele tropeça no degrau da porta da farmácia ao sair dela. O beijo foi breve e esquisito, mas qualificá-lo nada tem a ver com a imutabilidade de ter sido o primeiro. Sentados nas escadas do pátio após a aula, sem mais nem menos, ele me pergunta se pode me beijar. Eu aquiesço, não particularmente interessada nele, mas desesperada para adentrar as portas da verdade absoluta que supostamente me receberia após beijar alguém pela primeira vez. Lembro-me nitidamente do misto de repulsa e deslumbramento que me atravessou, de sentir que minha boca já não me pertencia mas, estranhamente, de querer que ela deixasse de pertencer. Nos anos que se seguiram, essa sensação me acompanhou como uma sombra, deslizando silenciosamente sobre mim e os corpos que se misturaram ao meu: por ora, não me pertenço mais. Eu digo oi mas sigo andando, e ele acena de volta, constrangido com o próprio tropeço, mas acho que não soube me diferenciar de outros rostos da adolescência que gravamos na superfície da memória através dos anos. Atravessei a porta, e nenhuma verdade absoluta veio me receber.
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Por algum motivo, esse encontro lacônico me faz lembrar da primeira mulher de quem gostei, anos depois, na universidade. Ela raramente sorria, tinha olheiras fundas e sempre chegava atrasada para a primeira aula. Me parecia a protagonista perfeita para um coming-of-age niilista dos anos 90. Esguia, angular, andrógina, ossos saltando por entre os ombros: ela tinha o corpo que sempre sonhei em ter. Nunca nos falamos. Um dia, durante o intervalo, ela entra na fila da cantina atrás de mim, e a proximidade súbita me deixa em um estado de nervos até então desconhecido. Não são borboletas no estômago: é algo mais profundo. Peço um pão de batata recheado, e ela sai apenas com um café preto. No banheiro, lavo as mãos e solto a camisa que usava por dentro da calça e me sinto aliviada por sumir, disforme, por baixo dos tecidos largos. Ali, eu também poderia ser esguia, não há como saber. Não sei de quem gostei mais: se dela, ou se dessa versão imaginada de mim.
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Decido ir à aula de funcional vestindo pela primeira vez apenas um top e uma calça, sem o adicional de uma camiseta ou moletom para me cobrir. Neste dia, somos só eu e uma colega de treino, e me sinto relativamente confortável, reservando apenas algumas olhadas de esguelha a meus próprios excessos refletidos nos espelhos na parede: os ombros vastos, os quadris largos, a estrutura óssea em que me sinto tão inadequada. Na última sessão, minha analista pontuou que este incômodo com o espaço ocupado por mim mesma vem de um lugar muito mais interno e inconsciente do que meu próprio corpo. Penso em todas as vezes que já li ou ouvi o quão valioso é investir em autoconhecimento, mas às vezes ele me parece um fardo que gostaria de evitar de tempos em tempos. Desconhecer-me: o alívio da ignorância. Um aluno homem entra pela porta para se juntar a nós na aula, e eu sinto o impulso de me esconder em um sobressalto.
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Começo a separar em mochilas vazias as roupas que, nas próximas semanas, serão levadas para meu apartamento. Meus armários sempre foram abarrotados, e navegar por eles é uma tarefa penosa. Há saias e vestidos justos demais, calças que fecham com dificuldade em minha cintura. Olho-os longamente, espalhados pela cama e pelo chão, condicionada ao apego pelas peças que me constringem. Sinto coisas que não sei nomear. Inspiro longamente pelo nariz e jogo todas, enfim, em uma sacola etiquetada com “doações”. Me pergunto se deveria aprender a ficar confortável com a exposição dos meus próprios contornos ao invés de eliminar tantas roupas dessa forma. Tenho ressalvas demais para ser definitiva. Expiro. Em seu livro “Ioga”, minha leitura do momento, Emmanuel Carrère diz sobre a expiração: é dar em vez de pegar, é entregar em vez de manter. É desapegar. Por agora, o que consigo fazer é me desfazer dos apertos: desapego dos tecidos como um mantra, como uma oração, e torço para que outras coisas figuradas partam junto com eles. Dar ao desconforto um espaço adequado para que exista em mim.
Amo como o seu texto é desnudo, verdadeiro.
Tem uma coragem que me arrepia e inspira. <3
Que texto mais genuíno Mari, me encontro muito nele e acredito que a nossa percepção do próprio espaço é realmente distorcida pela cultura e tudo mais que nos envolve desde a infância, uma pena, o tanto que perdemos ao não explorar os tantos pedaços de nós que se conecta com o universo através das partículas que nos fizeram corpo. Que um dia isso tudo seja mais leve, pra mim, e pra você ❤️