Tem cabelos brancos nascendo no topo da minha cabeça. São fios dispersos mas aos montes, despontando em meio aos castanhos que já não são muitos, sempre propensos a cair. Dei-me conta de sua existência no mesmo dia em que finalizamos a mudança para o apartamento, simbólico, até. Em nosso quarto tem um espelho comprido e bem iluminado que não deixa escapar nada aos olhos e, neste dia, vejo pela primeira vez um monte de coisas a que não dei atenção nos últimos meses: as sobrancelhas crescendo para todos os lados, as olheiras mais fundas, os relevos da pele, os fios esbranquiçados nascendo. É o estresse, diz uma amiga, como se isso não tivesse passado pela minha cabeça. Bem-vinda ao clube, diz minha mãe. Vinte e sete anos e pré-candidata ao cabelo grisalho me parece um arco até que adequado para a minha narrativa.
O desassosego toma conta de mim diante da passagem do meu próprio tempo tão escancarada, mas só por um instante: logo, ele cede lugar a uma outra sensação, menos inquietante, que não parece germinar na angústia, mas neste momento, o momento do espelho, ainda não sei nomeá-la e apenas deixo que se assente; talvez ainda não saiba neste momento que escrevo, também. Talvez os momentos sejam os mesmos. De todo modo, acabei criando o costume de procurar por eles, os fios brancos, em meus reflexos. É fácil confundir a procura com uma ânsia paranoica por que deixem de existir, mas a verdade é que tenho experimentado um alÃvio engraçado ao encontrá-los em seu lugar de direito. Encontro-os e deixo-os à mostra, por mais tÃmidos que ainda sejam: uma manifestação pequena e atrevida de tudo que há em mim e não posso controlar. É um tanto.
Encontro neles uma versão minha que sempre esteve adormecida, proibida de emergir à superfÃcie; uma versão que é mais falha, mais indomável, um tanto quanto alheia aos olhos do outro. Ela é mais familiar do que qualquer coisa e, ao mesmo tempo, uma completa desconhecida. Essa mesma desconhecida é a que tem misturado estampas que não fazem sentido, é a que tem se explicado um pouco menos, se livrado de excessos, falado um bocado de nãos, enfraquecido laços que apertam ao invés de abraçar. Em sua rede semântica, desagradável é cada vez menos um medo e mais uma coragem. É ela quem escreve estas palavras que ainda não me parecem minhas, que vão me soar completamente esquisitas se eu reler. Não vou.
Em meio a todos os limbos e transições que atravessei nos últimos tempos, acabou que me desconheci. Agora me dou conta do quanto precisava permitir desconhecer-me para dar lugar à curiosidade inesgotável em conhecer a que me habita por trás das cortinas do palco. Ela tem fios brancos e, apesar de estar muito exausta para correr com lobos, tem um certo quê de indômita em si. Eu tenho medo, mas gosto. Ou melhor: tenho medo e gosto. Assim mesmo.
Que texto lindo! Você tem uma capacidade de poetizar assuntos e cenas tão cotidianas que tudo parece poesia! Parabéns pela escrita!
Por aqui, os fios brancos só proliferam... e também gosto de pensar nessa outra versão que eles me revelam...