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A primeira coisa que faço ao levantar é ferver a água para o café. Na verdade, a primeira é passar no banheiro, mas essa é, invariavelmente, a segunda. Ainda sonolenta, deixo o coador no jeito, me apoio no balcão e fico no mais completo silêncio enquanto a chaleira faz seus ruídos e gorgolejos de costume. Não há nada nesse meio-tempo: a água está fervendo, e eu acompanho o seu lento caminhar. Outro dia, postei uma foto do café passando no coador e alguém me perguntou: por que você não usa uma cafeteira elétrica, bem mais prático. Eu disse que gosto do café coado manualmente. A resposta: mas é tão melhor, você aperta um botão e vai tomar banho, quando sai do banho o café tá pronto. Fiquei pensando no ato de espremer uma tarefa no tempo de fervura de um recipiente com água. Por ironia do destino, acabei por ganhar uma cafeteira elétrica; hoje, com relutância, levantei e enchi seu reservatório com água, o coador com pó, apertei os botões que tinham de ser apertados. Ela também faz uns ruídos e gorgolejos. A jarra foi se enchendo, gota por gota, o vapor da água quente se condensando na superfície de vidro, o cheiro quentinho despertando minhas narinas. Não fui tomar banho, e continuou a não haver nada no meio-tempo. Não pude deixar de reconhecer, satisfeita, o pequeno triunfo.
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Conheci a Rosa, senhora que mora no primeiro andar, uns poucos dias antes da mudança. Tivemos problemas com o gás encanado no fogão e, enquanto eu me lamentava para o zelador, ela disse que passou pela mesma coisa quando chegou no prédio. O problema acabou por se resolver mais tarde naquele dia e, quando cruzei com ela novamente, me perguntou se estava tudo certo com o nosso fogão. Sorri e disse que sim. Ela me fez a mesma pergunta alguns dias depois, aparentemente alheia ao fato de que já havíamos dito aquelas exatas palavras. Desde então, perguntou de novo, e de novo, todas as vezes que nos cruzamos no hall, ou no elevador. Tornou-se um costume, mencionar a Rosa-do-fogão. É como se nossa primeira interação estivesse para sempre suspensa no ar, um momento que se recusa a seguir caminho adiante.
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Ontem, a Rosa-do-fogão apenas sorriu e me desejou bom-dia da sacada, enrolada num robe, um copo quase vazio de café na mão. Senti um nó se formando no meu estômago: a consciência visceral e angustiante da passagem de um tempo que não se marca no relógio. O tempo que me escapa.
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Ser, para um humano, escreve Oliver Burkeman, em “Quatro mil semanas”, é acima de tudo existir temporalmente, no espaço entre o nascimento e a morte, certo de que o fim chegará, mas incapaz de saber quando. Penso nisso enquanto Fábio e eu caminhamos pela Paulista, pelas ruas e alamedas que viram nascer a nossa relação; as nossas primeiras vezes, os bares onde sentamos para tomar cervejas duvidosas, a calçada onde chorei no dia em que me dei conta de que estava apaixonada e apavorada na mesma medida, apavorada não com as primeiras vezes mas com o eterno não-saber de quando seriam as últimas. Hoje, tantos anos depois, o futuro já é outro. As primeiras-vezes se multiplicam através do tempo, e todas ainda se qualificam para ser última. Amor é a coragem de estar consciente de uma temporalidade eternamente incerta e ainda assim escolher ficar.
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O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me varre junto com ele, mas eu sou o rio; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.
Jorge Luis Borges
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Dar-se conta de que somos tempo é dar-se conta de que a condição primordial da nossa existência está completamente fora do nosso controle. Não há amarras que o aprisionem, jamais: é um desconforto que liberta. Estar desconfortável é estar viva.
que texto mais lindo. "Amor é a coragem de estar consciente de uma temporalidade eternamente incerta e ainda assim escolher ficar" <3
Texto delicioso, e li de manhã com meu café na mão. Me dei conta que também amo esse ritual sonolento, manual e silencioso, pela manhã. A cafeteira elétrica aqui fica pra quando tem visita mesmo. Infelizmente muitas vezes ele vira uma das mil tarefas feitas ao mesmo tempo, mas vc me inspirou a manter o momento intocado. Beijos