É uma manhã abafada e preguiçosa de sábado quando sou surpreendida na academia pelo aceno de um desconhecido, que se materializa na minha frente enquanto termino de ser humilhada mortalmente pelos meus próprios tríceps na máquina de polia. Tiro meus fones de ouvido com um misto de impaciência e relutância, já procedendo a responder que sim, eu já terminei meu exercício e que sim, ele já pode usar o aparelho, quando ele sacode a cabeça negativamente e me mostra a tela acesa do próprio celular. Essa é você, não é?, pergunta. Diante de mim, a última coisa que eu imaginaria ver na tela do celular de um homem treinando na academia que frequento (onde, às vezes, me sinto em um microcosmo feito especialmente de tudo que detesto): um texto da minha newsletter aberto no Substack.
Um pouco embasbacada, digo que sim, que sou eu, e pergunto como ele chegou aqui, aqui neste acaso, aqui nesta edição, neste exato momento que me parece tão improvável. Ele não responde, ou talvez eu não me lembre exatamente da resposta, mas sorri gentilmente, me parabeniza pelo texto e segue rumo ao seu próximo exercício, que provavelmente envolve muito mais anilhas e muito menos humilhação do que o meu, com uma naturalidade que não corresponde à magnitude que a coincidência imediatamente adquire dentro de mim.
Por um momento, me concedo a óbvia irracionalidade de me sentir uma celebridade em meu pequeno universo particular, mas a inquietação que fica é maior e mais duradoura. Acho que penso com uma certa frequência na onipresença das palavras em um contexto de grandiosidade - penso no quão rápido viajam através dos espaços extensos, no quão facilmente atravessam oceanos, no quanto constroem pontes longínquas que o mundo material jamais conseguiria. Para além dessa universalidade, penso também no quanto as minhas próprias palavras também fazem isso quando as lanço em direção ao mundo, principalmente quando as lanço aqui, onde me vejo ocupar socialmente um espaço de leitora e de autora diante das mais diversas escalas de distância. Mas pouco penso no quanto as minhas palavras também ressoam no aqui por perto, na familiaridade, nos espaços que frequento, nos círculos a que pertenço - no fato de que, quando escrevo, sou lida; sou passível de ser lida por quem me conhece em outras dimensões da vida, pelos colegas de trabalho, pelos amigos, pela família, pelos conhecidos da academia, lida pelos que, muitas vezes, figuram aqui nestas palavras e também se deixam tocar por elas.
Enquanto escrevo, penso se o meu colega desconhecido da academia, já não tão desconhecido assim, lerá esse texto também. Penso nas outras pessoas que me conhecem em outras profundidades, que também talvez o leiam, que têm aqui uma chave de acesso a uma janela de vulnerabilidade que eu talvez não escolheria oferecer no mundo real. Por um breve momento, me sinto consciente demais das minhas próprias palavras. É mais fácil ser lida por quem me conhece apenas sob a lente que ofereço na escrita. Ela assume outras possibilidades de significado diante de um interlocutor familiar, que tem acesso a outros recortes de mim, que me alcança em outra amplitude. Mas é nessa interlocução que ela adquire uma potência ainda mais transformadora, no corriqueiro, nas curtas distâncias, nos laços que já estão forjados. Percebo o quanto isso me escapa, às vezes: seu poder inesgotável enquanto instrumento não apenas para navegar um oceano, mas para também atravessar uma rua, um quarteirão, para também alterar e fortalecer as relações que me cercam. A onipresença da palavra se faz ainda maior no pedaço de mundo que ocupo fisicamente - ela viaja a ponto de, inclusive, retornar para dentro de mim mesma.
uau, que edição linda! adorei esse trecho aqui:
'Penso nas outras pessoas que me conhecem em outras profundidades, que também talvez o leiam, que têm aqui uma chave de acesso a uma janela de vulnerabilidade que eu talvez não escolheria oferecer no mundo real. Por um breve momento, me sinto consciente demais das minhas próprias palavras.' <3
Palavras lançadas pro mundo. Mari, me vi na sua reação entre a alegria e a surpresa.