Tenho muitas lembranças vívidas de experiências em hospitais. Tenho também a sorte de não possuir uma coleção muito vasta destas experiências - mas, dentro de sua pequena totalidade, as que vivi permanecem registradas em alta definição na minha memória. O pânico infantil que antecedeu a anestesia para uma cirurgia no nariz, seguido de acordar horas depois de um torpor incômodo com um McLanche Feliz diante de mim. Esperar o resultado de um exame de dengue na recepção lotada de uma madrugada de quarta-feira, sonolenta e exasperada. O purê e as gelatinas coloridas, lado a lado em suas consistências divergentes, na bandeja sob minha maca. A ardência e a coceira se alastrando pela minha pele durante uma madrugada de crise alérgica. As veias doloridas e arroxeadas na troca de cada acesso. Buscar meu pai após seus dias de isolamento para iodoterapia. Um bolo de coisas inomináveis na garganta que cirurgia nenhuma jamais resolveria. As lâmpadas branco-frias, o cheiro de coisa esterilizada, o piso gelado. O pânico claustrofóbico à espreita em meu peito dentro da máquina de ressonância, escaneando anualmente minha pelve cheia de gel e buscopan à procura do que há de errado com o meu útero. Seus sons tomando conta de tudo, acionando desconfortos que não são físicos dentro de mim. Meu marido é um fã de música eletrônica; eu não sou. Às vezes, tento me embrenhar pelo techno. Vez ou outra encontro algo que me captura: os sons mais brutais, agressivos, com elementos industriais e sombrios. Uma vez disse a ele: gosto das músicas que parecem máquinas transando. Foi o mais próximo que consegui, leiga que sou, de chegar a definir o que me agrada no gênero. Agora, enquanto escrevo, penso que talvez seja especificamente sobre músicas que se parecem com máquinas de ressonância magnética transando, um encontro agressivo das batidas e zumbidos metálicos que me perturbam e fascinam na mesma medida.
No consultório amplo e completamente desprovido de personalidade, o ortopedista diante de mim me pergunta se tenho tomado algo para a dor. Procuro-o com queixas de dores nos dois joelhos. Digo que não, nada. Ele ergue uma sobrancelha. Nem uma dipirona?, eu faço que não com a cabeça de novo, com mais veemência dessa vez, e ele não insiste na pergunta. Tenho uma tendência a recusar remédios até o último instante, eternamente aguardando que a minha dor atinja uma nota de corte na escala, um desconforto minimamente aceitável para ceder a um medicamento. Durante uma sessão recente, pergunto à minha analista se ela acha que eu deveria procurar um diagnóstico e um ansiolítico. Ela me pergunta por que eu consideraria o medicamento neste caso, se tanto recuso considerar um simples analgésico durante uma crise de endometriose. Dou de ombros. A dor física eu preciso aguentar, respondo, à guisa de explicação. Ela assente, e existe um momento entre nós de compreensão silenciosa, que me lembra das palavras da irlandesa Sinéad Gleeson em Constelações: “Como mulheres, aprendemos cedo que absorver a dor é uma forma de martírio que nos aproxima dos corpos de santas, como se o mal-estar fosse igual ao extase religioso. Que haveria algo de significativo no sofrer, mas não há.”
As minhas memórias clínicas são estranhamente tranquilizantes, na verdade. Talvez isso seja um pouco mórbido. Existe uma óbvia simbologia inquietante no ato de estar em um hospital, consultório ou sala de exame, que é ser lembrete da nossa própria mortalidade à espreita, mas acaba por ser também, em uma camada mais abaixo da superfície, uma evidência concreta das pequenas e grandes falências do nosso corpo, de uma carcaça que, por vezes, é falha. Há um alívio que me inunda diante desses fiascos: o fracasso do corpo é quase um convite, uma autorização a falhar no abstrato também. Nossas geografias particulares se tecem na medida em que habitamos o corpo. Nossos encontros com a dor, com o prazer, com a experiência física - um mapa com relevos acidentados, cordilheiras, oceanos, florestas e desertos.
Talvez seja o corpo a única pergunta que uma resposta não consegue extinguir. O verso de Ocean Vuong é um dos escolhidos por Sinéad para a epígrafe de Constelações, sua antologia de ensaios publicada lindamente pela Relicário em 2023, com tradução de Maria Rita Drumond Viana. Aos 13 anos, a autora foi diagnosticada com artrite monoarticular, dando início a uma adolescência permeada por cirurgias corretivas, cadeiras de rodas, muletas, incertezas e uma sensação quase perene de perda de autonomia, de um desconforto vital diante do que a diferenciava dos demais. "Durante aqueles anos, o que eu sentia, mais que qualquer outra coisa, era uma vergonha esmagadora", ela diz, em Colinas azuis e ossos de giz. "Queria me encolher, minimizar o espaço que ocupava". Sua experiência de vida é profundamente marcada por internações, intervenções cirúrgicas, procedimentos invasivos, mas, acima de tudo, pela dor - pelos encontros na carne que traçam a geografia da existência, especialmente, da que pressupõe habitar um corpo feminino. Anos depois, já na vida adulta, Sinéad recebe o diagnóstico de leucemia, e destaca, no ensaio intitulado 60.000 milhas de sangue, a experiência de falta em seu eu subjetivo de mulher diante da menstruação interrompida pelos tratamentos e dos inúmeros "fragmentos do Outro” que passam a compô-la pelas transfusões que recebe.
Sinéad é inquestionavelmente política no texto e fora dele. Em seus ensaios há um quê de memórias, por vezes atravessando a fronteira do autobiográfico, mas que acabam por traçar uma inevitável cartografia de gênero: as experiências que atravessam corpos de mulheres. A dúvida desdenhosa nos consultórios e enfermarias diante das queixas de dor. A expectativa de uma resistência grata, silenciosa e quase beatífica ao processo de gestar. A mulher irlandesa ainda tutelada por um Estado católico, machista e implacável, onde o aborto só vem a ser descriminalizado em 2018. Suas palavras são certeiras e jamais desperdiçadas em qualquer página. O que ressoa nos meus ouvidos tem uma pessoalidade só minha, mas é profundamente coletivo: "A história de nossas vidas ainda é a história de um só corpo. De problemas de saúde a corações partidos, vivemos dentro de uma mesma pele, conscientes de sua fragilidade, lutando com nossa mortalidade.”
Penso com frequência na coleção de pequenas dores que me atravessaram ao longo dos anos. As pontadas lancinantes de cólica. A aguilhoada aguda da agulha penetrando a pele. O latejamento da têmpora nos dias frios. Uma amigdalite - o esforço descomunal para engolir. O dente do siso tentando rasgar a carne em uma posição fisicamente impossível para despontar. Podemos tirar dois por vez, diz o cirurgião-dentista, ao que me oponho veementemente: vamos tirar todos de uma vez só, eu peço, porque neste momento me parece muito mais lógico me submeter ao extremo do que parcelar o desconforto. Mesmo com a boca anestesiada, sinto a pressão da broca perfurando-me do lado esquerdo para partir o dente em pedaços. Ao fundo, numa caixinha de som, toca Just Dance da Lady Gaga, o que me parece cômico e um pouco sádico na mesma medida; o cirurgião me diz que a filha mais nova é a fã número um da cantora, eu apenas pisco porque é a única coisa que sou capaz de fazer enquanto ele quebra meus dentes, e acho curioso que essa seja a lembrança mais vívida que tenho das cinco horas que passei imobilizada e de boca aberta no consultório, mesmo embora não me lembre nem do seu rosto. Penso na náusea sem contexto ou explicação que me invade nos dias de estresse, de angústia, de tristeza. Nos joelhos doloridos ao caminhar longas distâncias. Caminho-as mesmo assim. Insisto. Penso muito nesse inventário de suportações, às vezes por escolha, às vezes porque não havia opção - mas penso, especialmente, no longo índice de vezes que me foi dito para suportar. Uma sina nossa: o fardo que carregamos calvário acima.
Há também a dor difusa que se forma em um nó enrodilhado no peito antes dos aniversários na infância, ao decolar do avião, com o cinto apertado, frações de segundo antes de um beijo que se anuncia: a dor da antecipação. O coração que dói porque está partido, mas acima de tudo porque sente. A dor que vem acompanhada de prazer. A dor muscular que vem após os treinos intensos e comprova meu próprio progresso: uma mensuração invisível do que sou capaz de fazer. As dores que exibimos com um certo orgulho. Sinéad, Frida Kahlo, Lucy Grealy, mulheres que decidem sair das sombras e jogar a luz sobre seus corpos doloridos. Viva a própria geografia do corpo, o que Foucault chama de “atlas anatômico, ela escreve, em "Panóptico: visões do hospital”. Tendões de latitude, veias de longitude. Um terreno texturizado: a casca macia da pele, a corda dos cabelos, a lixa dos pelos raspados. No fim das contas, é um tanto sobre a experiência com a dor, mas também sobre a descoberta de que a dor, apesar de indício da fragilidade e da mortalidade pessoal, é, acima de tudo, o lembrete supremo de que estamos vivas - e eu me lembro.
Seja uma andarilha, uma nômade
Uma itinerante, uma errante
Navegue por todos os mares
Guie-se pelas estrelas
Trepe nas árvores, converse com os pássaros,
Semeie aonde quer que vá
Deixe pegadas em cada cidade
Beije e seja beijada
[…]“Uma não carta para minha filha” - em Constelações
Este tema: a dor, me toma um tempo grande. Acredito que a linha é muito tênue entre se autoflagelar e sentir o corpo na sua inteireza (o que inclui, também, a dor). Se medicar diante do pequeno indício de um desconforto diz sobre alguém que não se autoflagela ou alguém que foge do sentir? Sentiremos o pulsar do êxtase feliz se nunca provamos um lugar difícil de estar? O Yoga me faz refletir muito sobre tudo isso. Permanecer no desconforto para se desafiar a ir além dele... Enfim, muitas camadas, esse assunto merece uma mesa de café e horas a vontade de palavras a serem ditas....
Que texto intenso e profundamente sensorial, Mari! A forma como você costura dor, memória e a geografia do corpo é de uma beleza cortante. É impossível não se reconhecer nesses pequenos e grandes desconfortos, nessa expectativa silenciosa de suportar – e no alívio de reconhecer que nem sempre precisamos. Sua escrita é um convite à reflexão, à escuta do que habita dentro de nós. Obrigado por compartilhar algo tão potente!