Tenho sentido uma fome descomunal. Meus amigos brincam que são os efeitos de estar me tornando uma cavala convicta da musculação: o tamanho dos pratos precisa acompanhar a puxação de peso. E talvez seja um pouco disso mesmo. Mas não o todo. O metabolismo não dá conta de explicar o quanto, agora, mando para dentro com gosto o meu léxico alimentar da rotina: os ovos fritos no café da manhã, os pratos feitos do boteco próximo ao escritório, as vitaminas e tapiocas, as enormes tigelas de salada com toda a miscelânea de ingredientes da geladeira, os lanches e risotos que Fábio prepara no jantar, o almoço de domingo da família, com direito a bolo para o café da tarde. Minha mãe ergueu uma sobrancelha quando comentei isso com ela: quando eu fiquei grávida, disse, esse foi o primeiro sintoma. Confesso que cheguei a considerar um teste. Acabou não sendo necessário. Mas sigo com fome.
Mas comer com gosto não é só sobre fome: é apetite. Senti-lo consistente, em sua totalidade, me faz pensar no quanto simplesmente não estou acostumada a ele, por mais agonizante que seja o dar-me conta disso. Comer por prazer não faz parte do meu repertório de vivências. É um ato sempre delimitado por camadas muito densas de culpa, de vigilância, de vergonha; camadas mutáveis e fluidas, que desenham contornos cada vez mais refinados e intransigentes nos meus percursos. E eu, tão entregue às restrições, ao low carb, às contagens de calorias ou aos jejuns compensatórios, me vejo agora em uma recém-descoberta empolgação para provar, experimentar, repetir; para fugir do óbvio e pedir algo que eu nunca pediria na mesa de um restaurante; para me conceder também meus pratos favoritos, perplexa com um universo sensorial tão primordial e, ainda assim, tão novo e desconhecido para mim. Pela primeira vez, noto que meu paladar tem forma - e que nem meus mecanismos de controle mais sofisticados escapam (ainda bem) às garras do desejo.
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Comento com a minha analista que acho deveras simbólico estar com tanto apetite neste momento em que olho justamente para isso: para o quanto de fato exerço minha autonomia nos meus quereres e nas minhas decisões. Uma tomada de consciência que de início me paralisou - se não sou dona das minhas vontades, sou uma pessoa inteira? -, agora começa, em meio à angústia do baque, a fazer ondulações em um mar sempre assustadoramente calmo. Ela concorda e assente, ou pelo menos eu imagino que tenha assentido, pela câmera desligada do nosso divã online improvisado. Não é um mero apetite para comer, ela diz enfim, é apetite de vida.
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Sou profundamente atravessada por um trecho em particular da minha leitura do momento, Afetos ferozes, em que a autora, Vivian Gornick, narra um diálogo com a mãe:
"[…] Ninguém levava vida decente coisa nenhuma, todos viviam vidas ocultas. Não vai me dizer que as pessoas eram mais felizes naquele tempo, vai?"
"Não", ela cede imediatamente. "Não estou dizendo isso." […] Vasculha a cabeça para ver se encontra o que está dizendo. E consegue. Triunfante, acusadora, diz: "Hoje a infelicidade está viva demais."
As palavras dela me surpreendem e gratificam. Sinto prazer quando minha mãe diz uma coisa verdadeira ou inteligente. Chego quase a amá-la. “Esse é o primeiro passo, mãe", digo com voz suave. “A infelicidade precisa estar viva para que alguma coisa possa acontecer.”
De forma alguma me considero infeliz, mas penso que, tal qual a infelicidade, a fome denota faltas. Deparar-me com tamanho apetite, percebo, é me sentir, pela primeira vez, munida de uma energia muito vital para saciá-la, para preencher lacunas, para cobrir estas faltas com desejos - alguns irrealizáveis, outros não, mas todos enfim tateando o chão e as paredes de um lugar plenamente nosso, meu e deles, onde podem ganhar corpo, onde não precisam se dissipar pelo ar antes mesmo de virar palavra.
Há dias em que este apetite ainda me afoga ou me entorpece, minha lógica insiste em buscar por métricas para mensurar meus passos, insiste em chamá-los de progresso, e ele se recusa a dançar conforme a música: dança livremente, desgovernado, imprevisível, em círculos; ele me revela pedaços de mim que precisavam de resgate e me leva a caminhos não-lineares para a saciedade: ideias mais impraticáveis e menos verdades certeiras, mudanças de percurso, quebras na rotina, práticas mais despretensiosas, curiosas, que passam ilesas, ardilosamente, pelos meus filtros da censura. Tenho fome - e ela exige de mim um compromisso com o desejo, que não posso mais adiar. Ainda bem.
levantei a sobrancelha junto com a tua mãe.
sinto fome o tempo todo. fome de novidade, de abocanhar oportunidades, de saborear novas experiências. e de batata frita também.