Ninguém é obrigado a gostar de você
#20 - da última vez que chequei, isso aqui (ainda) não era um tribunal
Oi, como você tá?
Já que meu cérebro aparentemente se desmanchou pelo ralo em algum ponto desse péssimo roteiro de vida em que estou dando cabo de incontáveis tarefas simultâneas o-tempo-todo, nada me restou além de decidir reassistir às temporadas de Friends, meu entretenimento despretensioso e problemático favorito para esvaziar o HD interno. Eu sempre gostei de Friends porque me entrega a exata dose de normalidade aspiracional que eu preciso nessas ocasiões, sem exigir absolutamente nenhum esforço da minha parte, e com o adicional de personagens que de fato são carismáticos. (Ross não entra nessa conta)
Tenho uma amiga que é muito fã da série. Ela me disse uma vez que, se eu fosse um personagem da televisão, seria a Monica. Ela é uma Phoebe. Me faltam alguns atributos da Courteney Cox que eu certamente gostaria de ter, mas acho que faz sentido. É realmente com ela que mais me identifico, a mania por limpeza, o dom de transformar tudo em uma competição, a energia de mãezona (e de mandona) do grupo, confere, confere, confere. O famigerado anseio por agradar todo mundo também entra nessa lista, não apenas entra como talvez também a lidera. Fábio não gosta muito de Friends (falhas de caráter), mas tava aqui em casa enquanto eu assistia ao episódio em que Monica chora porque descobre que Chandler não gosta das massagens dela. Ele disse: nossa, é você. E eu com certeza choraria por isso.
Eu poderia construir um discurso nobre para sustentar o impulso pelo agrado que compartilho com Monica, mas, convenhamos, a essa altura do campeonato, acho que não convenceria ninguém. Não é que eu queira fazer todo mundo feliz; na verdade, esse impulso vem de um lugar meu bem egoísta. Agrado porque quero que gostem de mim, custe o que custar.
Por coincidência, reassisti a esse episódio no mesmo dia em que encontrei uma ex-colega de classe da escola no shopping, uma garota que declaradamente não gostava de mim. Não me entenda mal - ela não me odiava para os quatro cantos do mundo, tampouco me tratava mal de alguma forma, mas não me queria por perto. Eu nunca soube o motivo, até que um dia pedi para uma amiga perguntar. Sei lá, simplesmente não gosto, foi a resposta. Da mesma forma que eu simplesmente não gosto de camarão, ou de Clarice Lispector (desculpa), não gosto e ponto. Assim, e ponto, ela também não gostava de mim - e esse despojamento da coisa toda me matava por dentro.
Eu a encontrei fuçando nas araras do saldo da Zara, onde não me orgulho de ter estado mas estive, fazer o quê, eu carregando mais uma variação de todas as minhas blusas pretas para provar e ela com um vestido de cetim azul dobrado sobre o braço, olhando uma saia de vinil, duas peças lindíssimas e que eu jamais teria presença o suficiente para usar. Eu teria fingido costume, mas ela me reparou e disse um oi simpático, não simpático-simpático, apenas simpático do tipo o oi que nós daríamos para a ginecologista no consultório no dia do papanicolau, um oi que diz: eu preferiria que essa interação pudesse ser automatizada.
Eu sorri de volta, um sorriso que espero que tenha sido lacônico à altura, mas que talvez (provavelmente) tenha sido apenas patético. No fim, passei para a arara adiante com a minha blusa preta, que nem chegou a ir para o provador, e eventualmente fui embora de mãos vazias, o que foi ótimo. Ainda assim, fiquei encasquetada com isso o resto do dia. A verdade é que me parece totalmente inadmissível que, apesar de todos os meus esforços, ainda exista margem para alguém não gostar de mim.
Tem uma música do Beach House que gosto muito, que diz: It’s your world, why would you fake it?, e é a esse pé que estamos. Olivia Rodrigo também passa pela minha cabeça, se você preferir uma referência mais pop, I’m so caught up in the news of who likes me and who hates you. De todo modo, é isso. Por que eu deveria me dar ao trabalho de me adulterar em qualquer forma em prol da aprovação dos outros? Não deveria. Mas faço. Me sinto em um tribunal imaginário, ao qual me entreguei voluntariamente, tentando provar coisas imaginárias para versões imaginárias das pessoas que conheço. Mas, da última vez que chequei, aqui (ainda) não é tribunal coisa nenhuma.
Não à toa, acompanhar Lenu por toda a tetralogia napolitana de Ferrante chegou a me doer fisicamente; sou absurdamente como ela, mais como ela do que gostaria, guiada por uma régua invisível que mede desagrados, sempre muito consciente da minha versão interpretada pelo outro, consciente do quanto essa versão se adequa, se encaixa, dos ajustes de rota que preciso fazer para agradar, agradar, agradar. Em “História de um Novo Sobrenome”, ela diz: será possível que nem os momentos felizes de prazer resistam a um exame rigoroso? Estou aprovada? Estou agradando? O nosso exame rigoroso. Nada escapa a ele.
Mas é isso, né? Apesar de todos esses esforços excruciantes e referências literárias, o fato é que ninguém é obrigado a gostar de mim. Nem de você. E, por consequência, também não sou obrigada a agradar ninguém, porque afinal é sempre uma via de duas mãos, e porque o resultado desse esforço está totalmente fora das minhas mãos. É libertador estar aqui me concedendo esse lembrete, mesmo que na prática a aplicação não seja tão simples. Já vale. No meio de tudo isso, penso no que diz Austin Kleon, em Roube como um artista: validação é para ticket de estacionamento.
A menina do meu colégio pode me achar uma arrombada para o resto da vida sem motivos aparentes e eu jamais vou entender, mas contanto que eu esteja satisfeita com a arrombada que supostamente sou, é mais que suficiente para deitar a cabeça no travesseiro para dormir minhas sagradas oito horas de sono por noite, e quem sabe da próxima vez fuçar nas araras de saldo com minhas roupas pretas e iguais em paz.
(Ela arruinou totalmente a experiência pra mim.)
Um beijo,
Mari
lendo esse texto maravilhoso e depois lendo os comentários percebo que minha terapeuta há de ser feliz, mas que talvez seja bom procurar fazer feliz um psiquiatra também, porque me vejo na Phoebe, na Monica, no Chandler e na Rachel.
Adorei o texto. Amo Friends também. Foi uma série que me animou muito em tempos difíceis e frequentemente volto quando preciso esvaziar a cabeça. Do mesmo modo que você se identifica de certo modo com a Mônica, o mesmo posso dizer sobre o Chandler. Não tive pais problemáticos que se separaram (apesar que minha convivência com meu pai é difícil, mas por outros motivos), mas entendi que fazer pessoas rirem é o melhor mecanismo que tenho. Em vários aspectos. Quando ele diz que… "não sou bom em conselhos, estaria interessada em um comentário sarcástico… " me representa totalmente. Não me orgulho disso é claro, mas deixa minha terapeuta feliz: ela tem trabalho garantido pelos próximos anos.
Esse livro do Austin Kleon é incrível, e os outros dois dele também são! Recomendo demais. E certas pessoas que não gostarem da gente não é favor, é livramento!
Mais uma vez, parabéns pelo texto!
=)