Oi, como você tá?
Tem um mercadinho aqui perto de casa que nunca tem exatamente o que eu preciso e que sempre me toma mais tempo do que planejei. Houve uma vez em que quis muito um chocolate, mas não tinha e saí de lá com uma bolacha wafer para não desapontar completamente meu estômago, atrasada porque o senhor na minha frente queria recarregar o Motorola no caixa. Em outra ocasião, procurei por manjericão, ou rúcula, ou qualquer coisa para fazer molho pesto, mas só tinha alface; acabei por passar tristemente um queijo ralado no caixa após dez minutos atrás de uma mulher que não tinha troco, e por fim comi macarrão ao sugo mesmo. Já me resignei a essa experiência; acho que realmente é o conceito do mercadinho.
Ainda assim, eu volto lá sempre, por pura preguiça de ir a qualquer lugar num raio maior de distância. Dessa última vez, fui comprar uma escova de dentes nova - o que estava de fato disponível. Deve ter sido a primeira vez que aconteceu um alinhamento de expectativas dentro daquele estabelecimento, mas, naturalmente, levei mais tempo do que gostaria. A senhora na minha frente desfiou um rosário de queixas existenciais no caixa, eleições petistas máscaras varíola de macaco coroa no dente o filho que mora em Jundiaí e nunca visita, e depois de minutos que pareceram uma eternidade, saiu ouvindo um áudio no WhatsApp em volume máximo.
A moça no caixa me encarou entre o divertimento e o saco cheio. “Fala mais que o homem da cobra, essa aí”, disse.
Uma simpatia curiosa pela senhora me acometeu por dentro. Essa é, sem sombra de dúvidas, a minha frase favorita do português brasileiro todo. Quem é o homem da cobra? O quanto ele fala? Como esse comparativo tão específico atravessou cidades e estados e se tornou consenso? Não importa; é mais um daqueles acordos linguísticos silenciosos que de alguma forma funcionam para todos os envolvidos, os ditados populares e as expressões idiomáticas, o tipo de relíquia que este idioma faz render como nenhum outro.
Pergunto à minha mãe de onde ela acha que vem essa expressão. “O homem da cobra era um homem de cobrança”, ela diz, e acrescenta, à guisa de explicação, “eu pesquisei para contar para as crianças.” Aparentemente, os alunos dela também se cansaram de ouvir que falam mais do que o tal homem sem saber quem ele era.
Pergunto ao meu namorado, então. Ele responde, meio brincando, meio sério: “Sua mãe que inventou.” (Ela realmente a usa de forma irrestrita.)
E mesmo não importando, me pego perdida em um limbo de blogs sobre cultura popular, aqueles com layouts horríveis do Blogspot, que não recebem um post novo há anos - aparentemente, a única fonte disponível na internet sobre esse tipo de célebre frase. O “homem da cobrança” da minha mãe é o primeiro que aparece, uma figura que atravessou o tempo e o espaço diretamente de Minas Gerais, em algum momento do século 20, e que, de acordo com a mitologia cibernética, financiava os custos agrícolas de muitas famílias e se mostrava bastante inflexível na cobrança: era capaz de passar horas nos portões, até receber o que emprestou.
Mas há uma outra origem possível que também surge: o homem da literal cobra, um vendedor de praças que tagarelava incessantemente e garantia cura para prisão de ventre, lombriga, dores de amor e muitos outros males da vida com seu “elixir da saúde”. (A cobra não era um ingrediente - apenas um chamariz para atrair transeuntes impressionáveis. Você não se impressionaria?)
Gosto mais da segunda. Me parece mais condizente com a minha própria versão criada dessa figura mítica, um homem extravagante, um pouco lunático, com estampas descoordenadas a la Agostinho Carrara, talvez calvo, bastante cara de pau, bom no truco, conhece todos pelo nome. Tem um homem que anda aqui pelas redondezas do meu bairro com um papagaio empoleirado no ombro. Acho verossímil que o Homem da Cobra, que já ganhou iniciais maiúsculas neste texto, pudesse ter um papagaio no ombro também. Só não sei como funcionaria a logística com a própria cobra - mas isso não é problema meu, é dele.
De todo modo, já o consolidei tanto no meu imaginário, com papagaio ou não, que acho engraçada a sua falação, mesmo sem conhecê-lo, mesmo sem jamais tê-lo ouvido. Peguei um certo afeto por esse homem da cobra inventado, e me pego cada vez mais usando essa expressão de forma exclusivamente carinhosa. Minha mãe fala mais que o homem da cobra. Minha melhor amiga fala mais que o homem da cobra. Meu namorado, no auge da empolgação com alguma coisa, fala muito mais que o homem da cobra. Eu, depois de duas cervejas (talvez três, se estiver mal-humorada), também falo mais que o homem da cobra. E que bom que falamos.
Uso o dito cujo como termômetro para dar nome às tagarelices que ouço de coração, à falação que muitas vezes preenche meus silêncios, aos causos e histórias de quem me deixa pendurada pelos ouvidos. Que existam mais e mais oportunidades para falar mais que o Homem da Cobra com as pessoas que amo.
Por aqui, também falamos mais que ele com frequência, e nada mais justo: esses não-telegramas já nasceram batizados de tagarelices, nasceram para me tirar de um lugar onde eu já não falava mais que ele tanto quanto gostaria. Acho que é essa a parte mais massa de ainda existir vez para os textões na internet: poder falar do que der na telha, na veneta, falar com gosto, falar mais que o Homem da Cobra, sem limites de caracteres. Se depender de mim, o textão vai ter vez sempre.
Será que falei mais que ele ou tá pouco ainda?
Um beijo,
Mari
Que texto gostoso de ler! 😊
Agora este post acaba de instalar uma cobertura duplex no meu cérebro: eu sempre usei o "homem do leite" para esta mesma finalidade (seria um equivalente carioca?) - não tenho ideia do porquê nem muito menos de onde surgiu isso. E agora vou ter que ir pesquisar quem era o homem do leite e o que ele tanto falava!