Todos os anos, impreterivelmente, sou atingida por um pico de energia muito intenso, que começa em meados de outubro e se estende atĂ© o meu aniversĂĄrio, que acabou de passar. A partir daqui, o pico entra em declĂnio, faz sua Ășltima modesta aparição no carnaval (talvez) e me preparo, enfim, para retornar ao meu estado natural de hibernação - atĂ© o prĂłximo outubro. Com o passar dos anos, esse pico tem ficado cada vez mais curto, mas, ainda assim, acontece. HĂĄ quem diga que Ă© o perĂodo de festas, happy hours e confraternizaçÔes. HĂĄ quem diga que Ă© a inquietação do inferno astral que jĂĄ vai se anunciando. NĂŁo sei se estou tĂŁo preocupada com os motivos - apenas me acostumei a existir assim; acho que a energia social vem em ondas para todo mundo mesmo, cada uma Ă sua maneira.
A verdade Ă© que, por mais que eu adore ser inimiga do fim e esbanjar meu carisma sazonal nesse perĂodo do ano, marcando presença em todos os brindes, festinhas e encontros, eu sinto um imenso alĂvio quando minhas energias retornam Ă s suas origens, que sĂŁo lentas e introspectivas por definição. Nos Ășltimos meses do ano, amarrados a esse comecinho de janeiro, estou sempre irremediavelmente agitada, em alerta, ansiosa, facilmente entediada, nĂŁo consigo suportar o silĂȘncio, me recuso a ouvir meus barulhos, e a socialização em excesso surge como a Ășnica solução para criar uma sensação de justificativa plausĂvel no caos. Falsa, mas enfim. No meio de toda essa bagunça, acabo descansando de menos, bebendo demais, me expondo onde (e com quem) nĂŁo devia, buscando por todo e qualquer estĂmulo que possa me dispensar da necessidade de encarar esta mesma que habita aqui dentro. Mas ela sempre dĂĄ seu jeito de transbordar - e, no baque, retorno a ela, com o rabo entre as pernas, e a tudo que quer me dizer.
Acho que Ă© atĂ© simbĂłlico, inclusive, que esse movimento de retorno sempre se inicie junto com meus novos ciclos - e que aconteça cada vez mais rapidamente, ano apĂłs ano. Ă medida que envelheço, o retorno ao que me enraiza em mim Ă© sempre mais urgente, mais necessĂĄrio, inevitĂĄvel. Acho que gosto disso. Gosto de estar adquirindo mais certezas de quem sou, mesmo que todas elas sejam dĂșvidas. Gosto de ter o privilĂ©gio de ver o tempo passar e de quem estou me tornando no decorrer dele: uma pessoa mais confortĂĄvel em se apropriar de sua natureza. No aconchego da minha concha, me sinto mais segura, mais lĂșcida, mais conectada comigo mesma; ouvir-me na quietude da vida Ă© um presente valioso do qual espero poder sempre desfrutar.
Sou naturalmente propensa ao recolhimento, aos silĂȘncios; me distanciar desse aspecto tĂŁo fundamental da minha constituição Ă© sempre desconfortĂĄvel. SĂŁo nestes perĂodos, em que me ignoro e me volto completamente para o mundo externo, que vĂȘm Ă tona meus padrĂ”es e comportamentos mais nocivos: o desespero por agradar, os impulsos para sabotar as relaçÔes saudĂĄveis que cultivo, o nĂvel cruel de exigĂȘncia comigo mesma. Ainda assim, reconheço o valor de ser empurrada periodicamente pela vida para fora do casulo. Ă fora dele que fortaleço as pontes com quem me cerca, que cometo erros importantes, que coloco em palavras faladas minhas autoponderaçÔes, que aprendo mais sobre meu lugar no mundo. Ă na minha relação com o Outro que enxergo meus mecanismos com mais clareza.
Meu lado extrovertido, ainda que coadjuvante, é quem me aterrissa na pråtica. Agora, munida de tudo que a bagunça me ensinou, é hora de deixar minha quietude ganhar voz de novo - e as palavras escritas, finalmente, também.
Um beijo,
Mari
notas de rodapé
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Uma das coisas que estou querendo para esse ano Ă© ler menos e com mais qualidade. NĂŁo coloquei metas quantitativas no Goodreads (ou em lugar nenhum) pela primeira vez; meu Ășnico objetivo Ă© saborear com mais paciĂȘncia cada leitura, estudĂĄ-las com mais afinco, me dar tempo para mergulhar nas narrativas antes de passar, Ă s pressas, para a prĂłxima da lista. Ontem terminei a primeira do ano: Orlando, da Virginia Woolf (edição da Mariner Books, no original). Naturalmente, estou obcecada, como jĂĄ esperava que ficaria com essa obra de arte maravilhosa, vasculhando a internet por artigos e estudos para ir um pouco mais a fundo (aceito recomendaçÔes!). Que gostoso voltar a fazer isso: estudar apenas porque sim. âĄ
A prĂłxima leitura jĂĄ estĂĄ escolhida: Inverno, de Karl Ove Knausgard. E vocĂȘs? O que estĂŁo lendo por aĂ?
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Outra coisa que estou querendo para esse ano Ă© beber menos. Tenho percebido o ĂĄlcool como um grande catalisador de muitos dos comportamentos e questĂ”es que comentei durante o texto de hoje. Nessa semana, passadas as comemoraçÔes do meu aniversĂĄrio, dei inĂcio a um mĂȘs cem por cento sĂłbrio - que vai, inclusive, se sobrepor ao perĂodo do carnaval (deus me ajude). Estou insegura, nĂŁo vou negar: me acostumei a beber com constĂąncia, nos mais diversos contextos, e a precisar da bebida alcoĂłlica para acessar diversas coisas aqui dentro. Mas estou animada pela minha coragem em tentar e ansiosa para dividir minhas percepçÔes por aqui tambĂ©m. Deixo aqui como indicação, para quem quiser pensar o tema, esse episĂłdio do podcast Bonita de Pele, que me fez companhia na manhĂŁ de hoje :)
Aceito trocas e palavras de incentivo (âĄ).
meu pico de extroversĂŁo (que nĂŁo Ă© tĂŁo alto assim) Ă© sempre no fim do ano, que concentra boa parte dos aniversĂĄrios da famĂlia e as inĂșmeras confraternizaçÔes de dezembro. de janeiro a outubro, costumo ficar bem quietinho, preferindo organizar eventos com poucas pessoas, mais intimistas, porque me conecto melhor com as pessoas assim. aprendi a respeitar que esta Ă© a minha natureza: nĂŁo sou de grandes festas, de baladas, multidĂ”es...
Mari, esta edição foi um espetĂĄculo. Eu vivo na corda bamba entre o eu introvertido e extrovertido, mas nĂŁo sou tanto de fases, mas sim de picos de energia que vĂȘm e vĂŁo sem lĂłgica. Perdi amigas, ganhei outras. Me frustro e depois lembro que amo ser quem sou. Mas da trabalho. Te ler me ajudou a entender tudo isso melhor. Obrigada â€ïž