para ler ouvindo: 10:37, do beach house
Tenho raiva. Ultimamente, é o que mais tenho. Ela me faz dormir mais tarde e acordar ainda mais cedo. Ela me faz mais afiada nas palavras e bruta nos gestos, me faz virar os olhos, franzir a testa e torcer o nariz. Ela me faz falar mais alto. Me faz puxar discussões que eu jamais ousaria puxar. Tenho raiva da bateria do fone bluetooth que acaba sem aviso prévio, raiva do palestrinha que treina no mesmo horário que eu, raiva do cara que interrompe todas as minhas frases durante as reuniões, raiva dos fios de cabelo que caem no chão e recolho obsessivamente, raiva das reuniões marcadas em horários cretinos, das respostas passivo-agressivas, dos limites e das negativas não respeitadas, de quem segura o mesmo aparelho por meia hora na academia, de quem não dá seta para mudar de faixa. Tenho raiva - subitamente, sou um receptáculo que se expande com o ar, que contém a raiva de uma vida inteira.
Nunca fui muito familiarizada com ela: sentir suas ondas se formando nas minhas entranhas sempre me causou um desconforto imenso, um desconforto que rapidamente toma conta de tudo, se alastra e engole as labaredas que queimam no fundo da garganta, muito maior que elas, mais poderoso e mais insuportável; um desconforto que me obriga a abrir mão da raiva, a cedê-la, empurrá-la para debaixo do tapete, ou, ainda pior - transformá-la em outra coisa, destitui-la de seu nome, dar-lhe outro: cansaço, sobrecarga, sono, irritabilidade, hormônios, qualquer um. Me obriga a justificá-la, a vasculhar a vida em busca de motivos plausíveis para uma existência que deveria ser inquestionável. Talvez seja realmente a raiva de uma vida inteira.
Admito, para uma amiga, que não sei sentir raiva. Depois de tantos anos engolindo-a em nome do desconforto, deixei de compreender seus códigos, sua língua, suas instruções. Não é para mim. É como se não ela combinasse comigo, digo. Tem algo em sua natureza que não se enquadra em nenhum dos papéis que sou capaz de desempenhar. Ela responde simplesmente: não combina com nenhuma de nós.
Nos contornos da raiva, sinto-me inadequada. Ela mancha meu bom comportamento e solicitude com tons e traços que não parecem destinados a mim - não tenho autorização para desenhá-los ou preenchê-los. Me sinto imensa, demasiada, e me pego constantemente dissolvendo meus excessos. Todos eles. Para além da raiva: a recusa, o medo, a vergonha, a inveja. As vontades. A rebeldia. A insurreição. Os desejos. Ainda, os rompantes de alegria. A verdade é que tudo que é demais me faz querer encolher, diluir-me em líquidos mais neutros, mais insípidos. Abrandar os gestos, abaixar a voz, amansar minha própria existência, fragmentar minhas partes em doses homeopáticas. Releio meus textos antigos em busca desses fragmentos, reunindo peças perdidas de um quebra-cabeça disforme, e me dou conta do quanto isso tem sido tema por aqui há muito, muito tempo. Meu modus operandi sempre foi o do encolhimento.
Não gosto de estabelecer momentos definitivos onde acontecem viradas de chave, mas algo aconteceu, ou tem acontecido, durante este ano que se encerra - um transbordamento, talvez. As coisas escorrem deste recipiente que sou e não tenho mãos o suficiente para contê-las. Não foi voluntário, tampouco consciente - honestamente, eu teria continuado a me encolher de bom grado. Agora, no entanto, cada vez mais frequentemente, me pego desprovida das ferramentas para tal. Desprovida do conhecimento. Meus livros, meus scripts, os manuais de instrução por que cuidadosamente me guiei através do tempo - às vezes páginas vazias, às vezes completamente ausentes de resposta. Transbordo, escorro, me alargo. Tenho vontade de gritar. Uma arte que dominei por tanto tempo e agora me escapa pelos dedos - o que eu faço agora?
Minha ideia inicial com esse texto era fazer uma simples retrospectiva de final de ano, mas eu já deveria ter previsto que isso seria muito fora do meu próprio tom - no meio do caminho me peguei escrevendo sobre essa raiva sem tamanho e as palavras mudaram o curso das coisas contra a minha vontade, como tudo tem sido ultimamente. O que eu faço agora? Não faço a mínima ideia. Mas se eu pudesse nomear 2024 no meu hall de anos vividos (e eu posso), com certeza seria este: o ano dos sentimentos inadequados. Todos eles. Todos aos quais não dei um lugar nesta caixa - todos que se recusam a confinar-se nela, e me imploram, aos sussurros e aos gritos, para deixá-la também. Enquanto desaprendo a língua do controle, começo a me familiarizar com outras. Minha raiva, no fim das contas, me faz mais obstinada: me leva a bater o pé diante do intolerável, a defender meus limites. Meus desejos, assustadores e por vezes até moralmente questionáveis, dão coragem e amplitude para todos os meus movimentos, que começam a me levar para outros lugares quando me permito abandonar o volante. Meus medos me fazem mais próxima dos meus, me ensinam a confiar, a vivenciar a delícia do acolhimento. Eu sou eles. Eles são eu. Não vou mentir - não tem sido catártico, ainda não; me reconheço pouco, procuro padrões que não existem, teimo em me agarrar aos resquícios de lógica. Mas há momentos, breves lampejos, em que me sinto mais em casa do que nunca.
Todo esse monte de coisas dissolvidas, repartidas, sufocadas, reconstituindo-se em uma pessoa que é, no fim das contas, descomunal mesmo - e que, no ano que vem, quer apenas caber em espaços maiores, sem precisar se apertar.
(A retrospectiva vai ficar para o vídeo dump do Instagram)
Um beijo,
Mari
para ninguém falar que eu não fiz absolutamente nada de retrospectiva: os 10 melhores livros do ano foram escolhidos sim
Se eu tivesse que escolher um campeão definitivo para o ano, acho que seria Either/Or, da Elif Batuman, já traduzido aqui no Brasil pela Companhia das Letras. Sequência do também maravilhoso A Idiota, Either/Or é afiado, engraçadíssimo, profundo, híbrido, provocador, tudo na mesma medida. Já tentei sentar para escrever uma resenha sobre inúmeras vezes, acabo me perdendo na releitura de trechos e desisto - isso, no meu mundo, é sempre um bom sinal.
me contem qual foi o campeão do ano de vocês ♡
A raiva, quando bem canalizada, é uma ajuda e tanto para abrir caminhos, tomar atitudes necessárias... espero que 2025 continue a trazer mudanças, se encolher e engolir sapos uma hora dá mesmo má digestão... 😘
é difícil, mas a gente precisa aprender a lidar com sentimentos ditos ruins, como a raiva, da mesma maneira como lida com os bons. é necessário entender de onde vêm e o que dizem sobre nós. ter ciência do incômodo é um primeiro passo para canalizar esse sentimento de alguma forma, mesmo que seja erguendo uma barreira e estabelecendo um limite. engolir ou varrer para debaixo do tapete nunca vai ser a melhor solução.