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Gosto das chamas que queimam devagar. Da hesitação que vai se amontoando no peito, da ambiguidade que se recusa a ser qualquer outra coisa senão ela mesma, irresoluta e infinita, da tensão que corre pelas nossas terminações nervosas feito água em queda livre. Tenho um ponto fraco para livros slow burn, os romances que se constroem na lentidão das páginas, e acabam por nos deixar cinquenta mil vezes mais recompensados quando se concretizam de fato: só no desfecho. Com Jane Austen, a rainha das chamas lentas, mergulho de cabeça na impossibilidade do amor de Emma e Knightley, e no desdém que lentamente se transforma em fascínio entre Elizabeth e Darcy (o crush literário eterno). Com Edith Wharton, fiquei às voltas com os desenlaces de Archer e Olenska em A idade da inocência. Com Emily Henry, que tem entregado as melhores comédias românticas da literatura atual, me rendi às clássicas e infalíveis fórmulas para narrar o slow burn: inimigos que se apaixonam, ex-namorados que se reaproximam, melhores amigos feitos um para o outro. Há algo de arrebatador no fogo que demora a pegar, faiscando timidamente antes de incandescer, testando seu próprio território.
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Não sou muito dada a tomadas de decisão. Poderia culpar a lua em libra, mas não tenho propriedade o suficiente para me aprofundar nisso. Passo muito do meu tempo pensando em ideias impraticáveis; acho que imaginar demais é parte de quem escreve, e explorar o imaginário me leva, inevitavelmente, a pensar nos could have been que deixei pela vida. Em todas as coisas que já foram indefinidas para mim um dia, antes das respectivas decisões que as fariam definidas e, por consequência, tornaram inviáveis todos os outros resultados de possíveis diferentes decisões que não tomei. Nos tempos (remotos) de solteira, ganhei de uma amiga um título: a que cozinha e não come. Eu tinha o terrível costume de enrolar os contatinhos até o último segundo possível, para depois, na maioria das vezes, pular fora - ou, ainda pior, desaparecer do mapa. Horrível, eu sei, mas se eu não puder ser genuína aqui, qual é o ponto? O fato é que às vezes acho que o momento do flerte sempre me interessou muito mais do que o que vem depois dele. Suspenso em um limbo nebuloso, sem significado ou resultado definido, apenas um dado lançado no ar do acaso, quando tudo que importa é saborear o descompromisso idealizado e todos os ‘e se?’ se preenchem com as melhores partes da nossa criatividade. A faísca se encerra em si mesma, um fragmento luminoso que contém todo o potencial do fogo, assim como o que não aconteceu contém em si todas as possibilidades que a imaginação pode levantar. Esse universo temporário de ramificações, onde todas elas ainda são possíveis e irreais - é isso que a tomada de decisão encerra, categórica e imperativa. Quando decido, uma porta se abre diante de mim e todas as outras se tornam janelas que não posso mais acessar, apenas contemplar pela eternidade, às margens do impossível. Acho que tenho uma tendência a levar uma vida meio slow burn nesse sentido: conduzir tudo a banho-maria, até toda a água evaporar. É um defeito meu, mesmo - a mania de prolongar a indefinição das coisas, de evitar suas implicações no mundo real.
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Em Past Lives (Celine Song, 2023), a protagonista Nora deixa a Coreia do Sul quando criança para imigrar com a família para os Estados Unidos - e, juntamente com a vida que fica para trás, fica também Hae Sung, seu melhor amigo e primeiro amor. Décadas depois, os dois se reencontram em Nova York, onde Nora vive com o marido americano, e contemplam, juntos, tudo que poderiam ter sido em uma vida com escolhas diferentes. E se ela nunca tivesse deixado a Coreia? E se ele tivesse vindo para Nova York? Não importa: você tinha que partir porque você é você, é o que diz Hae Sung em certo momento. Eu gostei de você por quem você é, e você é uma pessoa que vai embora. Past Lives é um filme, sobretudo, sobre a dilacerante tomada de consciência de que cada uma de nossas decisões faz nascer uma versão nossa, enquanto as outras, que permanecem no imaginário, morrem - e há que se saber dizer adeus a elas. É uma narrativa sobre despedidas.
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Minha analista me disse algo que ficou no fundo da cabeça nos últimos dias: a melhor parte de não ter respostas é poder inventar. Essa liberdade também é angústia, penso, porque exige mais do que faísca: inventar a vida parte, necessariamente, da ousadia de ocupar um lugar de ação. De decisão. Escolher e percorrer caminhos. Teimo em não querer deixar minhas outras vidas possíveis partirem e adio meus movimentos o máximo que posso, sempre entre a cruz e a espada, mas a verdade é que para ser quem a gente é, precisamos continuamente abdicar de quem poderíamos ter sido. Despedir-se das versões que nunca fomos é abrir mais espaço no abraço para as que escolhemos ser. Acho que, no fim das contas, gosto dessa invenção que sou: eu me trouxe até ela com meus próprios pés.
As palavras de Nora ecoam em mim: quero me comprometer com a minha vida. Nas páginas, não abrirei mão dos meus romances slow burn, mas escrever a vida requer a coragem de deixar a chama queimar. Que ela não falte jamais.
Adorei o texto. Lembrei de Raul Seixas, que fala: "cada escolha guarda um destino".
“Evitar as implicações do mundo real”
Achei dahora
Parabéns seu texto foi tipo um abraço que eu estava precisando
Obrigado