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Às terças, frequento um templo de umbanda próximo. É uma casa ampla, ladeada por muros altos, e logo na entrada há uma pequena lanchonete, com mesas de plástico encostadas à parede, azulejos engordurados e lâmpadas de led pendendo do teto. O cardápio é enxuto: bebidas em latinha, água sem gás, café coado e os salgados da vitrine, que, a propósito, são os melhores que já comi em toda a minha vida - uma improbabilidade cósmica que me intriga profundamente. Tornou-se costume chegar cedo para pegar um bom lugar e, antes de me acomodar, comprar um dos salgados do dia, sempre quentinhos, crocantes e cremosos na medida certa. Frequentemente me pego pensando na mera existência dessa cantina, um pedacinho curioso e deslocado de mundano em meio ao etéreo. Nesta terça, o dono da lanchonete me diz que agora tem quiche de alho-poró, e eu peço um. E depois outro. Digo, aos risos: eu já nem janto mais de terça, só para comer aqui. Quando me levanto para sair, ele me entrega um copo de café, quase por transbordar, e digo que não pedi. Ele sacode a cabeça com veemência. É de presente, insiste, e acrescenta com uma certa solenidade na voz: a gente tem que presentear quem está presente. Seguro o copo de plástico entre as mãos como um talismã. Até as improbabilidades têm sua razão de ser.
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Me dou conta de que o café costura todas as histórias que decido contar.
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Sento em um dos lugares vagos no fundo do salão com meu café recém-conquistado. Tiro da bolsa meu exemplar surrado de Linha M, lido e relido e esquadrinhado por incontáveis vezes nos últimos anos. A viagem intimista e escancaradamente sincera pela alma e pelas andanças de Patti Smith é um guia sagrado que consulto sem moderação. A verdade é que cada releitura me parece a primeira, e talvez seja mesmo; talvez nossos livros favoritos sejam favoritos porque guardam a sete chaves esse segredo de nos arrebatar uma vez após a outra, sempre munidos da familiaridade de um lar e do magnetismo de uma descoberta eterna. Não é tão fácil escrever sobre nada, ela repete, entre mantra e tormenta. Tenho pensado excessivamente nas palavras que vou colocar no papel, ocupando com o pensar as lacunas que deveriam ser preenchidas com ação. Escrever sobre nada. Às vezes sinto esse poder se esvaindo pelos meus dedos, e às vezes ele flui como se sempre estivesse ali. Escrever sobre nada, aterrissar no agora, saborear o poder de mantê-lo suspenso no ar pela palavra. As palavras do dono da lanchonete sobre estar presente se enraizam no fundo da minha cabeça. Tenho a impressão de que as coisas se conectam de alguma forma, mas talvez seja apenas um desejo.
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Mas e suas palavras, de onde vieram? Eu fiz questão de colhê-las do ar. Eu, por outro lado, tenho colhido minhas palavras nas profundezas da terra. Elas pesam, como uma âncora antiga, enferrujada e imóvel, e me imobilizam, sem jamais entregar o poder de me libertar a qualquer outra coisa. Pertence a elas. Não é tão fácil escrever sobre nada. Às vezes, escrever sobre nada é tudo que tenho. Às vezes, é o que me falta. Mas sempre, invariavelmente, é o que me constitui como um ser que escreve antes de recorrer a qualquer outra forma de expressão. Não é tão fácil escrever sobre nada: é precisamente nele que nos embrenhamos para abrir as gavetas, cutucar as feridas abertas, virar os desconfortos do avesso.
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Digo à minha analista que não aguento mais encarar o limbo em que minha escrita caiu. O arquivo de Word com meu projeto de ficção, uma grande bagunça de anotações, descrições de personagens e alguns capítulos rascunhados, me encara inquisitivamente todos os dias, e eu perco, dia após dia, a coragem de encará-lo. Digo a ela, sem precisar de pergunta: evito as palavras porque é mais fácil escolher evitá-las do que lidar com a possibilidade de que elas falhem, ou me faltem. Talvez, ela diz, você precise reconstruir esse elo a partir de uma escrita menos impositiva, mais despretensiosa. Escrever sobre nada. Escrever as pequenas catarses, as pequenas tragédias, as pequenas coisas mornas que não são uma coisa nem outra e ainda assim parecem conter mais significado do que todo o resto. Dar contornos à magia do mundano. Saborear a coragem de ser um ser que escreve, e se escancarar nessa dimensão tão nossa.
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A gira é de marinheiro e, de olhos fechados, eu peço a Iemanjá e à toda corrente do mar que me abençoem com sabedoria para navegar pelas minhas próprias palavras.
Quando o texto se perde, geralmente começo a escrever sobre o texto em si, só para recuperá-lo. Às vezes ele volta.
Estou totalmente impactada com a frase “é preciso presentear quem está presente”. O universo sabe demais das coisas.
Que lindo, me encontrei nessa navegação pelas palavras despretensiosas, desde sempre foram elas que me revelaram as raízes dos meus pensamentos e pequenas pedras preciosas escondidas no meio da terra suja do caos mental.
Obrigada por compartilhar!