Entre o oito e o oitenta ⚖️
#46 - percursos da análise, ausência de respostas e uma vida que não se escreve sozinha
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Estou escrevendo um conto que me surgiu de um sonho. Ou estava. Na ocasião, acordei agarrada às sensações que me restaram dele, anotando palavras freneticamente antes que me escapassem por completo pelos dedos, como os sonhos costumam fazer; passei horas maquinando o começo-meio-e-fim da narrativa, e, enfim satisfeita com a circularidade da coisa, escrevo-a com uma certa obsessão. Na sessão do dia seguinte, conto toda a história inventada à minha analista. Não demora muito para que a ponte entre ficção e realidade seja estabelecida, mas eu insisto na ficção com veemência. Já passa dos quarenta minutos quando ela pontua que escrever no papel é, também, um recurso, e me pergunta se tenho conseguido escrever fora dele. “Você diz escrever a vida?”, eu pergunto de volta, confusa. Ela sorri e o corte lacaniano se instala entre nós, afiado.
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Há um certo prazer em preencher as páginas literais que se sobrepõe até mesmo à angústia de acessar os desconfortos para escrevê-los: o prazer do controle. Um pedaço de papel sob o meu completo domínio. Nele apenas cabem escritos de minha escolha. Meus desfechos inventados. Minhas regras. Dentro do papel, escrever é também um poder; fora dele, as regras são outras. Escrever a vida. O quanto dela tenho escrito com minhas próprias palavras? O quanto dela é realmente possível escrever com autoria e o quanto é inevitavelmente escrito pelo outro? O quanto tenho me paralisado diante dessa página sem fim, evitado-a, recorrido aos plágios, dos mais imperceptíveis aos mais imperdoáveis?
As palavras empacam junto comigo, e o conto permanece interminado em um arquivo no meu notebook, assim como todo o resto.
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Na semana seguinte, digo à minha analista que não consegui escrever mais. Estou inquieta, ansiosa, desconfortável, apavorada com a perspectiva de seguir abrindo estas gavetas que encontramos. Tarde demais: já estão destrancadas. Não há como resistir à curiosidade de abri-las. Serviu de aprendizado, mas acho que preferia ter ficado burra, acrescento. Rimos - acho que de nervoso. De certa forma não é um exagero: às vezes anseio por exatamente isso. Viver na ignorância, feliz e alienada, alheia à origem das minhas inquietações, aplacando-as com dopamina e as tranquilas ilusões de resolução.
Sou eu quem traz a escrita da vida para a conversa desta vez. Falo sobre os plágios a que me percebo recorrendo, sobre a minha autoria duvidosa, nebulosa, em tantos e tantos capítulos. Me sinto uma impostora. Costumo ficar longos períodos em silêncio nas sessões, mas neste momento mal paro para respirar. Os plágios parecem a única saída, explico; se não tenho condições de atravessar esse rio para chegar à outra margem, se não tenho respostas, preciso de alguma forma mimetizar quem parece ter. “E como você espera encontrar uma resposta se não conseguiu formular a sua pergunta ainda?”, ela diz finalmente. Minha enxurrada de palavras se detém.
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Minha pergunta. Nunca havia pensado nisso: que não há uma resposta padrão para uma pergunta que é apenas minha. É como colar do colega à frente em uma prova cujas questões o professor rearranjou em inúmeras versões distribuídas pela classe, justamente para evitar a cola. E nessa ânsia por responder, dou respostas que não formulei por conta própria, respostas a outras perguntas, que não foram feitas a mim. Me espelho no Outro, dou de cara com a parede, busco um outro Outro, recomeço todo o processo. Do oito ao oitenta, depois de volta ao oito, e assim por diante, buscando este atravessar do rio que finalmente vai me elevar. Me dar unidade. Me dar lugar.
Às vezes penso que talvez ninguém tenha realmente atravessado para o outro lado; estamos todos dentro do rio, nadando e flutuando à nossa maneira. Talvez o ponto seja esse: aprender a estar na água. Permitir-se ser fluida, intercambiável, como ela. Talvez a gente tenha nascido para ser ambíguo mesmo, incoerente, desconexo - e o fardo de insistir em ser esta unidade inalcançável tem ficado pesado demais para carregar.
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Tudo que há entre o oito e o oitenta me passa despercebido. Subitamente me sinto cansada: quero me livrar desse fardo, jogá-lo pela janela. Quero calcular menos as minhas jogadas. Dosar menos os meus desejos. Interromper as engrenagens que transformam tudo em um projeto, um propósito, um fim. Pegar retornos e rotatórias, mudar a rota sem me sentir tão culpada. Hoje escrever, sem a pressão sufocante de uma vocação, e amanhã não botar uma palavra sequer para fora. Hoje pensar sobre a indústria da beleza, amanhã me preocupar apenas com o tamanho da minha bunda na academia. Hoje entregar minhas melhores ideias no trabalho, amanhã me permitir fazer o mínimo. Parar de tentar colar caquinhos que simplesmente não se encaixam mais: não formam nada. Assumir a autoria deste não-todo.
Talvez eu nunca tenha me reconhecido como inteira em minha falta de unidade porque também estou neste meio do caminho que insisto em ignorar, ambígua, sujeita a alterações, invisível aos meus próprios olhos. Quanto mais tento repelir o que me faz humana, mais me aproximo desse eu inconsistente, contraditório, que me apavora e me hipnotiza na mesma medida. Ela é rio, e não margens. É ela quem pede, cada vez mais alto, para tomar a caneta e o papel em mãos. Tudo que há entre a capa e a contracapa é história - escrever a vida é percorrê-la com os próprios pés.
Por vezes penso no que estaria perdendo se o não saber fosse tudo que eu tivesse. Já em outras, com a caneta nas mãos, vejo o rio desaguar, coisa que só acontece quando se entra nele, e se molha por inteira.... que edição linda Mari ❤️
Que texto maravilhoso. Tive que segurar o choro no escritório, é mole? <3