🧩
Como boa leitora e escritora que sou, tendo a gostar muito de navegar intuitivamente pelas dualidades e antagonismos, de percorrer as curvas sem pressa, de me deter no por quê mais do que no o quê - mas devo confessar: no fim do dia, nada me dá maior prazer do que encontrar soluções lógico-matemáticas para as coisas. No colégio, apesar da propensão às humanidades que me é natural, sempre me dei muito bem com as exatas, com as equações que só se propõem a encontrar um x e ponto, com o cálculo estequiométrico que só exige balancear reagentes e produtos, até mesmo o aspecto exato do ato de escrever: a tese; a introdução, o desenvolvimento e a conclusão; a coesão e a coerência. Regras com muitas exceções, no entanto, sempre me deixaram meio paralisada diante das apostilas: a probabilidade, a análise combinatória, os fenômenos geológicos. A aula extra - mas obrigatória - de teatro. O que queria era um começo, um fim, um resultado único e indivisível, pedacinhos homogêneos no meio da vida.
🧩
Ainda na escola, decidi que queria ser escritora. Antes, já havia passado pela oceanografia (uma longa história), pela economia e pelo jornalismo - a quem retornei no futuro. A partir do momento em que encontrei coragem para dar corpo ao dizer mais importante de todos, quero escrever, todas as outras decisões possíveis ficaram para trás. Para cada vida que a gente escolhe viver, outras mil não vividas murcham em uma fração de segundo; as portas podem ficar entreabertas, mas sempre fiz questão de fechá-las e trancá-las a sete chaves, feito uma criança que não consegue dormir, assombrada pelos monstros que habitam o corredor de madrugada. Eu queria escrever, mas minhas engrenagens são pura razão, e por um período isso se tornou minha vida por inteiro, o x da função, o raio da circunferência; pessoas que, à época, importavam, naquele microcosmos que era todo o meu mundo, me disseram que esse era o meu talento, e eu respirei aliviada por um instante: a solução para a minha equação. O resultado indivisível. Este é o meu todo. Um recipiente pequeno demais para conter qualquer outra variação. Mais tarde, descobriria que nem mesmo a escrita seria capaz de me firmar enquanto unidade coesa, e a incógnita voltaria a saltar diante dos meus olhos em um opressor pedaço de papel.
🧩
Na primeira aula de um curso recente, cada um dos participantes recebe uma folha de papel e lápis coloridos, espalhados no centro de uma longa mesa compartilhada onde nos sentamos todos. A tarefa é simples: precisamos desenhar um círculo que esteja o mais próximo possível da perfeição em medidas, sem usar nenhum tipo de mensuração, e depois colori-lo com o que vier à cabeça. Ao meu redor, observo de esguelha que todos passaram com displicência e despreocupação pela etapa de desenhar o círculo, enquanto eu tento calcular qualquer coisa obsessivamente em uma lousa invisível para garantir que ele seja proporcional e perfeito, como se houvesse de fato um prêmio para isso. Quando passo à etapa de colorir, faço um contorno em um tom de azul-escuro e escolho um verde-claro para pintar. Pinto o círculo todo caprichosamente com a mesma cor, sem deixar nenhum rastro escapar ao contorno, satisfeita com o pequeno todo que criei. Somos orientados a deixar nossos desenhos expostos no centro da mesa, e todos ao meu redor expõem círculos tortos, abertos, desconexos, com cores e rabiscos sobrepostos, mas profundamente bonitos em sua desordem. Percebo que todo esse desarranjo talvez não seria bonito se eu me apropriasse dele. É um código que não reconheço. Sinto um aperto no coração que não sei nomear, tampouco afrouxar.
🧩
Pedacinhos homogêneos no meio da vida. Ainda os quero mais que tudo. É como sempre operei diante de uma apostila com perguntas de vestibular, é como opero diante das infinitas planilhas e slides que sou obrigada a entregar, e é como também opero no restante das esferas que orbito: à base de fórmulas que me permitam chegar em algo sólido, integral. Uma unidade de coisa que não é nada além dela mesma. Acho que em certa medida todos sofremos um pouco da síndrome de pensamento cartesiano, mas às vezes ela me consome por completo - não sou autorizada a ser nada que não seja homogêneo, consistente, uno. Me nego o direito à incoerência, às contradições. Mas sou. Acima de tudo, contraditória. Desconexa. Desintegrada.
🧩
Há dias em que não tenho mais vontade de escrever. Às vezes, drenada pelo mundo corporativo; às vezes, simplesmente interessada em fazer outra coisa: dormir; malhar; assistir um reality show; ou simplesmente não traduzir nada em palavras ao longo do dia e ponto. Todas as vezes em que isso acontece - e tem acontecido com frequência, por inúmeros motivos que também são uma longa história -, mergulho em uma espiral de angústia interminável. Porque escrever foi o mais próximo que cheguei de vislumbrar uma unidade possível para me constituir, como quem chega perto de ver Deus. Porque todas as vezes que dou as costas à escrita, ou a qualquer coisa que me atravesse, preciso fechar a porta, e o processo da ruptura são pequenas feridas que se multiplicam exaustivamente. Eventualmente sempre volto ao molho de chaves para destrancá-las e reabri-las, dando-me por vencida: preciso poder adentrar mais de uma. E adentro-as furtivamente, como se alguém pudesse me flagrar em tamanha contradição.
🧩
Os dias em que não quero escrever são minoria. Ainda assim, acho que descobrir que a escrita não era inteira o suficiente para me fazer inteira foi a desilusão amorosa mais devastadora que já vivenciei, e me permiti ficar à deriva, distanciando-me dela nas ondas. Outras pessoas, que foram importantes em outros microcosmos que também já significaram meu mundo todo, me disseram que meu talento era outro, outros, e eu me descobri fazendo coisas variadas da vida. Transitando entre os cômodos. E hoje ainda me pego ensaiando a sentença que me fez tocar meu contorno sólido e impenetrável com a ponta dos dedos: quero escrever. Mas flerto com as outras portas. Me parece inconcebível conciliá-las. São polos repelentes, pedaços desconexos, nenhum me faz inteira por si só. Não sei encaixar minhas próprias peças. Ninguém nunca disse que preciso encaixá-las. Tomo a tarefa como obrigação assim mesmo.
🧩
“I still think everyone experiences their own life as a narrative. If you didn’t have some kind of ongoing story in mind, how would you know who you were when you woke up in the morning?”
— the idiot, elif batuman
🧩
Escrevo meio sem pensar e me deparo com as palavras no papel: meus desejos me apavoram. Se cada desejo denota uma falta, me faltam pedaços, e se me faltam pedaços, não sou inteira. Cada desejo que sinto é mais um rabisco desordenado em meu círculo perfeito. Eles se misturam entre si, às vezes se repelem, completamente insolúveis, como tentar riscar à lápis sobre o giz de cera. Às vezes acho que o que desejo mais ardentemente é a própria contradição - o traço que escapa do contorno e se espalha pelo papel, qualquer que seja. Percorrer o corredor, me demorar nele, espiar todas as frestas. A autorização para experimentar pedacinhos de vidas paralelas à que escolhi viver. Para desejar pessoas e coisas que desprezo na mesma medida. Meus desejos me apavoram porque denunciam o vazio onde deveria estar esse santo graal uno e indivisível da minha essência, a minha coesão, que finalmente me faria uma pessoa de verdade - válida, inteira, adulta; eles me apavoram porque me escancaram a minha própria complexidade, a humanidade que insisto tanto em não chamar de minha, em recusar como recuso uma cestinha de pães de couvert no restaurante. No fim das contas, o círculo não é perfeitamente proporcional, e a pintura homogênea implora por outras cores sobrepostas no papel. Abrir portas que ainda não encontrei. Escrever e deixar as linhas vazias. Mudar de ideia. Deixar as peças desencaixadas. Querer coisas que nem tem nome. Talvez eu esteja querendo demais, mas quero assim mesmo.
Um beijo,
Mari
🧩
Decidi que escrever estará sempre ao meu lado, como ler. Ainda que eu esteja fazneod bolo pra vender ou preenchendo o estoque de um supermercado. Escrever é minha companhia e dela não abro mão. Bom te ler novamente, Mari!
Eu acredito que por vezes o corpo pede espaço, para gestar (ali não cabem palavras, ainda). Esse espaço entre o viver e o colocar no papel o que se passa a partir da existência, dos acontecimentos, nos gera angústia por parecer ser um espaço em que a palavra se ausenta. Mas na verdade, ela ainda não nasceu....