Não tenho mais como procurar rodeios para fugir desta afirmação que é, sob qualquer ângulo, em qualquer circunstância, inteiramente verdadeira: estou muito, muito cansada. Gostaria de conectá-la a uma segunda oração tão simples e categórica como esta, do tipo estou muito cansada porque o trabalho está me matando, e embora o trabalho esteja ocupando um papel grandioso nesse cansaço, embora eu olhe ao redor e enxergue com assustadora nitidez a exaustão coletiva no mercado em que estou inserida, ainda assim não posso afirmar nada tão raso, porque estou cansada por um monte de coisas, estou cansada porque entrego tudo de mim ao responder às demandas do Outro, em horário comercial e fora dele também, e respondo a absolutamente todas, sem critério; respondo a tudo que me é demandado, explícita e silenciosamente, enquanto líder, enquanto colaboradora, enquanto filha, esposa, nora, cunhada, enquanto corpo feminino, entrego tudo de mim repetidas vezes e não me sobra muita coisa além da pergunta que ecoa em marteladas ressentidas no fundo da minha cabeça: o que mais vocês querem de mim?
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Entro em um dos meus cafés favoritos com uma amiga. Assim como a maioria dos cafés que se multiplicam pela cidade, ele exerce um poder restaurador sobre mim, e imediatamente me aninho em um casulo mental seguramente protegido pelo aroma de espresso e de canela, pelas músicas (geralmente) muito bem selecionadas, pelos ruídos de fundo do vaporizador de leite e das conversas em voz baixa. Minha amiga pede um cookie de macadâmia e um coado; eu peço um chai latte, provavelmente minha bebida favorita para se pedir em qualquer estabelecimento que a sirva. Recebemos, dez minutos depois, um cookie, um coado - e um latte.
"Não foi isso que eu pedi", eu digo com um suspiro, e procedo a levar minha xícara à boca.
Ela me interrompe na velocidade da luz. “Então vai beber por quê? É só pedir pra trocar", diz simplesmente.
Eu balanço a cabeça com insistência. Digo e repito que não precisa. Que pode ser esse mesmo. Que não quero causar nenhum incômodo. Ela pisca, percebo, um pouco desacreditada, e chama o garçom em meu nome. O pedido é retificado. Desculpas são pedidas. A xícara é levada. Em breve, substituída por uma de chai. Eu tomo o que estava morrendo de vontade de tomar, aquecida por dentro, mas é tarde demais: meu casulo já está irremediavelmente esburacado, traçado, estourado diante do que pisca diante dos meus olhos com clareza pela primeira vez - a minha recusa em validar as minhas próprias reivindicações, até mesmo as mais simplórias.
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Recentemente, minha analista (eu sei que vocês sentiram falta dos highlights das minhas sessões) me disse: "Você só vai descobrir se cabe nessa vida que está vivendo se traçar seus limites para caber confortavelmente nela, ao invés de se confinar". Não me lembro como chegamos nisso, mas chegamos. "Não acha que é um bom momento para testar?"
Caber. Essa semântica domina minha vida, circula infinitamente na minha órbita. Confinar-me, encolher-me, diminuir de tamanho, literal e figurativamente, a perder de vista. Acho que me confinei tanto às molduras dos outros que me esqueci de qual é meu tamanho real, e agora estou aqui, sufocada, contemplando toda essa magnitude que tentei comprimir e amassar e vasculhando o abismo em busca de um espaço maior onde ela possa existir em sua totalidade. Sim, respondo a ela de todo modo, é um bom momento para testar, na verdade é um momento tão bom ou ruim quanto qualquer outro, mas ainda assim.
Ela me pergunta se eu tenho medo de descobrir que não caibo nessa vida.
"Na verdade, acho que tem uma parte de mim que secretamente deseja muito descobrir que não dá para caber", me ouço dizer baixinho. “Porque aí", continuo, “eu acho que finalmente aconteceria alguma catarse. Eu poderia fazer algum tipo de movimento” (um pouco, acrescento no final).
"Mas por que você não pode fazer agora?”
Eu digo que não sei.
"Seu desejo por movimento - por uma leitura de mundo diferente, por operar sob outra lógica - isso tudo só é legítimo se você chegar ao ponto insustentável de precisar disso como último recurso?"
Sim, eu respondo, ciente do absurdo.
"Você não pode tecer outras formas de vida simplesmente porque quer? Não seria motivo mais do que suficiente?"
Não.
Por que é tão difícil nos autorizar ao ato de reivindicar nossos quereres, nossos limites, nossos itens não-negociáveis? Seria uma ousadia tão grande assim? Uma afronta?
Se eu não sou a autoridade máxima do meu próprio querer, quem é?
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[…] Eu disse que tinha a impressão de que as outras pessoas, de repente, tinham me ultrapassado muito com seus casamentos, suas casas, seus filhos, suas poupanças. Ela disse que quando uma pessoa se sente desta forma, precisa examinar melhor quais, de fato, são os seus valores. Temos que viver os nossos valores. Muitas vezes as pessoas são guiadas por uma vida convencional - aquela vida que somos bastante pressionados a viver. Mas como pode haver apenas um caminho válido? Ela diz que muitas vezes esse caminho não é bom nem sequer para as muitas pessoas que o seguem. Elas fazem quarenta e cinco, cinquenta anos, e então dão de cara com um muro. É muito fácil ir flutuando ao sabor da correnteza, ela disse. Mas não por muito tempo.
Maternidade, Sheila Heti
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Escrever, penso, também soa como uma afronta às vezes. Eu gosto mais de mim quando enxergo meu próprio reflexo nela.
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Às vezes, a noção do desagrado do outro me parece insuportável. Ser diretamente responsável por ele com a minha recusa. Comento isso com uma amiga, que nada tem a ver com a amiga do café (eu tendo a obcecar com os assuntos que me rondam e a esticá-los de todas as formas possíveis): Faz parte de crescer e amadurecer, ela diz, tentando me fazer sentir melhor, mas me sinto horrível: então se não consigo bancar meus nãos e suportar o peso incômodo do desagradar, não cresci ainda? Que limbo é esse no qual estou presa?
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Em Maternidade, Sheila Heti usa o lançamento de três moedas, técnica de consulta do milenar sistema de adivinhação I Ching, para tecer alguns dos capítulos. Tradicionalmente, ao consultarem o sistema para tomadas de decisão, grandes governantes e pensadores chineses praticavam o lançamento das três moedas seis vezes, resultando em uma rede complexa, profunda e muito simbólica de possíveis resultados e interpretações. Heti, por sua vez, inspira-se na prática, e não no sistema, e acaba por materializar algo semelhante a uma melhor-de-três, apenas lançando três rodadas da mesma moeda no ar diante das suas próprias perguntas - cara para sim, coroa para não, ou vice-versa. Eu pouco (nada) sei sobre I Ching, mas vou me inspirar na versão simplificada da autora para lançar ao universo minhas próprias perguntas aqui - e, para cada uma delas, um lançamento real de três moedas:
A minha hesitação em dizer não quando preciso é a origem da minha exaustão?
Não
É algo mais profundo que isso?
Sim
Mas é colocando meus nãos mais em prática que vou conseguir me aprofundar nisso?
Sim
O motivo pelo qual tenho que dizer mais não é esse? Chegar nessa origem?
Não
É para criar uma separação mais sólida entre o que sou eu e o que é o outro?
Sim
Eu sinto que quase não há essa separação hoje. Essa nebulosidade é perceptível?
Não
Mudaria alguma coisa se ela fosse?
Não
Ok, não é perceptível e isso não importa, mas essa separação, estabelecer esse espaço - é importante, certo? Eu deveria mesmo estar depositando tanta energia nessa odisseia?
Sim
Então dizer não é o que vai abrir espaço para mim mesma na minha própria moldura?
Sim
E quando eu tiver espaço, o que acontece? Eu deixo de estar tão cansada?
Não
Eu permaneço cansada e ponto? De nada vale tudo isso?
Não
Eu permaneço cansada, mas vale de algo?
Sim
Eu permaneço cansada, mas talvez passe a escolher com mais autonomia os cansaços que realmente me valem a pena. É isso?
Sim
A finalidade máxima de bancar nosso não, então, é abrir alas para os sim que queremos verdadeiramente dizer à vida?
Sim
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Cara ou coroa. Talvez o que me falte seja trocar os advérbios de lugar com mais frequência: onde digo sim por medo, um não; onde digo não também por medo, um sim. Recusas que delimitam, que ressonam; concordâncias movidas por desejos reais. Sim ou não. Cada vez menos antagônicos para mim e cada vez mais partes fundamentais de um mesmo mergulho: negar o que confina para abraçar o que movimenta.
Mari, quero um dia escrever que nem você. Que texto lindo. Vou levar pra minha análise ❤️
Que você se sinta descansada e regenerada em breve Mari, adoro sua escrita 😘