No papel
#62 - escrita física, rabiscos, desenhos ruins e um (não tão breve) diário de coisas vistas & lidas nos últimos tempos
Às vezes, realmente é sobre o papel. Sobre coar um café, encher a caneca e depositá-la junto a ele na mesa. Sobre sentar-se diante do caderno, percorrer a capa com os dedos, abri-lo, procurar a primeira página vazia desajeitadamente. É sobre o papel. Sobre destampar a caneta, marcar a data de hoje no topo da folha, escrever as primeiras palavras com um quê de incerteza, de insegurança, de quem ainda não sabe muito bem o que quer falar. Geralmente não sei. Falo mesmo assim. Palavras apressadas, que subitamente têm urgência em se tornar escrita. O café esfria na caneca, porque não há tempo de tomá-lo. Saboreio o assombro, o deslumbramento de encontrar minhas próprias revelações. São os melhores dias: estes em que descubro pedaços ainda intocados de mim na superfície preenchida. Descobrimos juntos, simultaneamente, em um espaço que é unicamente nosso. Às vezes, as palavras não saem, e quem faz as vezes são rabiscos desconexos, que livremente se tornam formas distintas ao fim. Deixo-me guiar intuitivamente por seus comandos invisíveis. É sobre o papel. Sobre materializar a palavra, os traços, os percursos, mesmo quando não há clareza. Especialmente quando não há clareza. Às vezes, optar pelo giz pastel, por tentar traduzir em cores. Sou péssima em desenhar, mas fazê-los mesmo que sem talento me ensina mais do que qualquer técnica jamais ensinaria. É sobre ver as coisas no mundo físico. Dar-lhe um lugar nele. Permitir que percorram os frágeis fios que me ligam até ele, emaranhados e por vezes engarrafados, e possam transitar livremente, jamais me abandonando por completo. Tenho escrito muito, talvez mais do que jamais antes, ouso dizer. Pouco para o mundo, e muito para mim. Muito nesse papel que é só meu: meu segredo comigo mesma. É sobre ele, no fim das contas.
Um beijo,
Mari



coisas vistas & lidas
na última edição, falei quase que inteiramente sobre Constelações, da Sinéad Gleeson, que li em fevereiro e amei - mas também tenho colecionado pequenas impressões sobre filmes e leituras dos últimos tempos que, bem, se acumularam, e agora vão virar uma grande lista.
As intermitências da morte (Companhia das Letras, na edição antiga) foi meu mais recente do Saramago, autor pelo qual venho me embrenhando e querendo completar toda a coleção. No dia seguinte ninguém morreu é a icônica frase de abertura, que inaugura um mundo utópico onde a morte não atua mais; no entanto, como é tradição do autor, a utopia se torna distopia, e a ausência da morte desencadeia falências no Estado, na Igreja e nas relações humanas. gostei especialmente da morte enquanto personagem, mais humana do que todos nós.
Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo (Companhia das Letras, trad. Camila Holdefer) foi devorado durante o carnaval, na beira da piscina, bem leitura de verão. gostei demais do formato híbrido, um emaranhado de narrativas fragmentadas em versos livres e sem pontos finais que se conectam para dar voz a mulheres complexas, brilhantemente escritas, que colidem com o machismo e o racismo sistêmicos através do tempo e do espaço, em uma Londres pós-Brexit instável e fervilhante. me deixou inspiradíssima para tirar um projeto de ficção do papel.
Açúcar queimado, de Avni Doshi (Dublinense, trad. Adriana Lisboa) foi uma ótima surpresa, escolhida aleatoriamente na biblioteca do Kindle. em uma Índia quente, caótica e patriarcal, a autora constrói uma moldura angustiante para pintar as entranhas sombrias da relação de poder entre Antara, uma artista plástica recém-casada, e sua mãe, a quem chama de Ma, e cuja memória passa a entrar em declínio com uma doença degenerativa. li em doses homeopáticas, como quem precisa de tempo para digerir entre garfadas, para voltar à superfície e pegar ar.
New Animal, de Ella Baxter (no original da Macmillan versão ebook) faz parte de um subgênero que gosto muito: o das Protagonistas Garotas Traumatizadas e Degeneradas. Amelia está acostumada a colecionar lutos - sua família é dona de uma agência funerária, e seu papel é maquiar os cadáveres - e a agir da forma mais animalesca possível para suprimi-los, transando com o máximo de desconhecidos que pode para experienciar o que chama de ser medicada por outro corpo: "Na maioria das noites, me pego tentando me tornar essa coisa de duas cabeças, com membros agitados, dentes vorazes e cabelos emaranhados", ela diz, na minha tradução livre. quando quem morre é sua mãe, em um acidente doméstico, ela atinge um estado de transbordamento e foge para a casa de seu pai biológico, na Tasmânia, onde, em um clube de BDSM, é forçada a confrontar as camadas do seu próprio luto. um romance de estreia afiado e sarcástico. adorei!




no quesito filmes, fui ao cinema assistir nosso patrimônio Fernanda Montenegro em Vitória (2025), novo longa de Andrucha Waddington, inspirado na história real de uma senhora que, munida de uma câmera digital, ajuda a desmantelar um esquema de tráfico de drogas no Rio - um pouco simplista demais, mas Fernanda é sempre um espetáculo e sustenta cada minuto com seu carisma;
A Real Pain (2024) é uma joia preciosa dessa temporada de premiações, que transformou minha quedinha pelo Jesse Eisenberg (ator, diretor e roteirista do longa) em um penhasco;
já A Garota da Agulha (2024), de Magnus Von Horn, tirou meu sono e meu apetite - logo, entrou para os favoritos. sombrio, cru, cínico, com uma trilha sonora de arrepiar tudo, numa Copenhagen degradada no pós-guerra, onde o verdadeiro horror é, pura e simplesmente, ser uma mulher sujeita à máquina do capitalismo;
e Pequenas Coisas como Estas (2024) ficou por último porque é certamente minha coisa favorita em toda essa lista - a adaptação para o romance de Claire Keegan, que amo, é cheia de sutilezas e de potência narrativa nos não-ditos, nos não-acontecidos, além de traduzir visualmente muito bem a atmosfera melancólica que tanto nos encontra nas páginas e entregar uma performance brilhante do maioral Cillian Murphy.
Que gostoso ler essa edição! Adoro ver rabiscos / desenhos / escritas de outras pessoas no papel!
gosto dessa sensação de escrever “sem rumo” no papel, deitando palavras cujo sentido descubro no caminho…