Comecei a rascunhar essa edição pensando em fazer um apanhado das melhores dicas de 2023. O que ele virou, na verdade, era para ser só uma breve introdução meio reflexiva meio retrospectiva do que foi esta loucura de ano, mas eu sou prolixa por natureza, o trem descarrilhou e eu perdi o controle do texto, o que acho que diz muito sobre o que quero de fato dizer - e foi mais do que suficiente para me convencer a mergulhar nessa insistente (e contagiosa) necessidade de revisar ciclos.
Dito isso, vou me dar a permissão de contrariar minha própria estilÃstica e já entregar o coração do texto logo de cara: 2023 foi o ano em que eu fui. Verbo ser no intransitivo mesmo, com todas as lacunas que um desvio linguÃstico pode deixar. Fui um monte de coisas, inclusive opostas. Fui contraditória. Fui inúmeras versões de mim, sem muito apego à necessidade de ser consistente, de ser unidade, pela primeira vez na vida. Acho que tudo que eu quis dizer aqui, incluindo o que escrevi e apaguei, se resume a isso - um ano em que reconheci minhas ambiguidades como minhas. Eu fui, e ponto.
Este ano começou com a compra de um apartamento, um noivado, uma viagem muito esperada (minha primeira experiência meio solo, que ainda vai virar relato por aqui em algum momento), e abriu alas para meses de reforma e a nossa tão desejada mudança. Do nada, um giro de cento e oitenta: de completamente perdida a uma adulta perfeitamente funcional, aprendendo a administrar e a compartilhar um lar. A única meta de 2023 brilhantemente cumprida com tempo de sobra. Botei a vida em ordem para caralho e, ainda assim, dei com a cara na parede ao descobrir o óbvio: que todo esse aparato de autonomia não preenche os vazios da vida, não dá certezas nem seguranças, muito menos um lugar nessa mesa dos adultos à qual tanto desejei me sentar. Os ovos nos quais pisei, sigo pisando.
Ansiei pela independência por muito, muito tempo, mas acho que esqueci de me preparar para o que vinha depois dela: a autonomia para tomar decisões próprias. Cometer erros próprios. Enxergar as molduras que não nos pertencem, as caixas em que encolhemos para caber. Reconhecer padrões - e rompê-los. Desvencilhar-nos dos lugares que herdamos e não escolhemos ocupar. A verdade é que a independência me assustou horrores. Mesmo que nunca completamente, ser livre é aterrorizante. Exercer a liberdade é de uma coragem sem tamanho.
Mas se há um complemento que posso usar sem hesitação para o meu verbo ser, em 2023, é esse. Coragem. Fui particularmente corajosa neste ano, até mesmo quando me achei covarde, ou caà na armadilha de acreditar que o medo monumental me faria covarde apenas por sua mera existência. Em inúmeras ocasiões, pensei em desistir da análise, por puro medo de conhecer quem me habita, mas a curiosidade de abrir a caixa me faz seguir atravessando esse rio interminável. No fim das contas, eu sou o rio. Fui corajosa para não recusar ou silenciar minhas crises, para olhá-las de perto, para colocar em curso as mudanças e impulsos que vieram com elas; corajosa para romper amizades em que eu não cabia mais, para desagradar com mais frequência, para dizer não; corajosa para ter conversas difÃceis, comigo mesma e com meu companheiro, corajosa para me despir de romantizações e construir uma relação real no correr dos dias; corajosa para questionar minhas certezas, desejar outras pessoas, acolher meus quereres. A casa, à s vezes, tá bagunçada. A casa de dentro também. Deixei umas camadas de verniz pelo meio do caminho e me sinto viva, me sinto menos razão, o sangue pulsando mais nas veias. Tinha muito de mim adormecido sob seu brilho.
Em 2023 eu fui viajante solo, fui escritora, leitora, meio cinéfila; fui jornalista, estrategista de conteúdo, lÃder e aprendiz; fui filha, irmã, companheira, à s vezes egoÃsta, à s vezes detestável; fui pintora de paredes, mãe de planta, anfitriã, cozinheira, maromba de academia; fui fã das minhas amigas, sommelier de negronis, fui presença na cidade, à s vezes inimiga do fim, à s vezes enclausurada no meu casulo. Eu fui milhares de versões, algumas velhas amigas, outras recém-chegadas. Prefiro continuar sendo no intransitivo. Entre todos os objetivos cumpridos e degraus caminhados, minha maior conquista do ano foi essa: viabilizar a existência de partes de mim que não se conectam com o personagem a quem dei vida por todo esse tempo. Talvez seja hora de nos despedirmos, eu e ele. Ser ambÃgua, inconsistente, incoerente.
Que o novo ciclo seja cheio de medo, cheio de dúvidas, cheio de ovos para pisar. Remexer pelos rastros dessa desordem, no fim das contas, é a maior delÃcia.
ainda bem que esta edição enveredou por caminhos inesperados <3 eu adorei saber do seu ano e de toda coragem que o cercou!
Meu Deus, Mari, que texto delicioso! Quanta sensibilidade cabe em uma página?
TUDO ISSO! Somos todos ambÃguos porque tem um infinito de possibililidades dentro de nós que não acessamos, nosso inconsciente. Obrigada por esse presente!!