🎧 para ler ouvindo:
Perco muito tempo consultando meus próprios scripts. Sou uma atriz de método, engessada: não sei improvisar, não sei inventar minhas próprias falas, sigo à risca os roteiros em mãos. Para ser sincera, até como atriz de método, também não sou lá essas coisas: o Outro me paralisa, me impede de memorizar as falas escritas para mim. Não consigo me desvencilhar nem mesmo da consulta constante. O que ele quer ouvir? O que espera de mim? E o próximo que cruzar meu caminho: o que vai querer? Transitar entre os papéis, entregar essa personagem multifacetada sem cortes, on cue - tarefa árida, extenuante, especialmente para uma atriz como eu. Vasculho as páginas em busca das respostas certas para cada Outro que me demanda. Às vezes, não encontro nada. Às vezes, encontro tudo, e minha performance se completa. Na ânsia por me adequar perfeitamente a todos os meus interlocutores, por conquistar suas inestimáveis aprovações, esqueço de me adequar a mim mesma.
Se todas as minhas ações são reações ao Outro, o que é meu e o que é dele? O que me sobra sem ele? O que me sobra sem o roteiro? Fico pensando nisso, e me apavoro um pouco com a perspectiva de ficar de mãos vazias. Às vezes me sinto como um jogo de Jenga, é o que digo à minha analista em uma das últimas sessões. Ao mais ínfimo movimento de remoção dessas peças, por mais delicado e calculado que seja, desmorono: não me sobra estrutura. Mas de onde vem o desejo de remover as peças?, ela me devolve, e acrescenta: todos precisamos de cartografias para navegar pela vida.
Ainda assim, não consigo me livrar dessa sensação de aniquilação, do querer jogar tudo para o alto, isolar-me completamente do mundo, construir-me no silêncio e no vazio como uma tela em branco apenas para me provar que consigo; uma tela que nunca será verdadeiramente em branco porque muito do que somos já é, inexoravelmente, a soma de com quem somos. Não há como eliminar o Outro da equação - somos seres de comunidade, nos sustentamos em pessoas naturalmente, e é inevitável que estejamos sempre, em alguma medida, respondendo às suas demandas. Mas escolher nossos referenciais, lembro, também é autonomia.
Com quem sou? Com quem tenho me construído? Tenho pensado muito nisso. Enquanto o pavor da rejeição me prende nos braços dessa validação inatingível, eternamente consultando o roteiro, ele também me turva a visão, me faz perder de vista meus referenciais, minhas cartografias para navegar. Me recolho da água, com medo do mergulho. Na mesa onde a todos se deve agradar, qual é o critério? A quais demandas atendo por mero reflexo e a quais realmente vejo sentido em responder? Com quem quero mesmo estar sentada? Quanto mais me debruço sobre isso, quanto mais resgato para perto de mim as minhas inspirações, mais me resgato - e me descubro - também: tudo que me faz querer, de alguma forma, ocupar este lugar compartilhado com as pessoas que admiro, também diz muito sobre quem quero ser, e até mesmo sobre quem já sou: minhas intersecções com minhas referências revelam-me os papéis de mim que realmente quero desempenhar. É um saber que não vêm dos roteiros.
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Duas linhas de Either/Or, da Elif Batuman, aqui traduzidas livremente, me paralisam no meio da página: […] Ao mesmo tempo, diz a protagonista, Selin, tive uma poderosa sensação de ter escapado de algo: de ter, finalmente, saído do meu próprio script. Eu realmente acho que às vezes não somos nós que escolhemos os livros na estante: são eles que nos escolhem.
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Às vezes começo a me flagrar desobedecendo. Pequenas transgressões. Improvisos quase imperceptíveis, linhas de diálogo que permito moldar à minha própria boca. Desobedeço o roteiro como quem tateia no escuro, mas de alguma forma munida de uma clareza que costuma me faltar. Dou respostas que eu mesma não podia prever, às vezes a perguntas que eu mesma fiz. Abro meus ouvidos para ouvir quem me guia, para me reconhecer em suas palavras, no que me provocam; ao mesmo tempo, ensaio tentativas de construir muros para me distanciar, enfim, de quem me convoca dos lugares onde me sinto inadequada, insuficiente, invalidada; distanciar-me, sem jamais deixar de admitir sua existência, de demandas estruturais que não precisam ser minhas. Uma amiga me diz, na mesa do bar, que me toma como exemplo para muita coisa na vida; dias depois, alguém da minha equipe no trabalho me diz algo muito parecido após tê-la liderado na entrega de um projeto caótico, mas que nos encheu de orgulho. Eu choro, em segredo, nas duas ocasiões: é uma pequena catarse, ou talvez imensa, perceber que o caminho de reencontro com meus referenciais também me leva a me reconhecer enquanto referência. Há meus traços e rabiscos na cartografia coletiva dos que me cercam.
É difícil se desgarrar de um hábito tão ferrenho - insisto nas falas roteirizadas, mas me pego desejando outras, que não foram escritas ainda. Sair do script: repito como um mantra, como uma prece, e saboreio todos os pequenos momentos de coragem de fazê-lo. Talvez eu não seja uma boa atriz porque quero mesmo é escrever (e dirigir!) a vida, sem tantas instruções, apenas minhas próprias braçadas livres no mar.
Um beijo,
Mari
notas de rodapé
Faz um tempo que não apareço por aqui, eu sei. As últimas semanas foram bem intensas - muito trabalho, muitos projetos e desafios super legais, mas que acabam exigindo boa parte da minha energia. Como resultado, não estou conseguindo manter a constância que gostaria em escrever :( Venho tentando pegar leve comigo mesma e não me exigir abraçar o mundo, mas também repensando minha rotina e em formas de não deixar de lado as coisas que são realmente importantes pra mim nesse momento de vida profissional caótica, como a escrita, a atividade física e o tempo para comer com qualidade.
Enquanto isso, algumas coisinhas que cruzaram meu caminho e mexeram, de alguma forma, em todo esse caminho de resgates e reencontros que está acontecendo por aqui ♡:
🎤 O discurso de Da’Vine Joy Randolph, vencedora da categoria de Melhor Atriz Coadjuvante por “Os Rejeitados” (filme incrível!) foi um dos meus momentos favoritos do Oscar 2024: “Por muito tempo, eu quis ser diferente do que sou, mas percebi que só preciso ser eu mesma” <3
📚 A leitura da vez é Nós, mulheres, da jornalista e autora espanhola Rosa Montero: um compilado de histórias de vidas femininas muitas vezes negligenciadas pela historiografia. De Agatha Christie a Irene de Constantinopla, Montero nos traz, acima de tudo, mulheres que desobedeceram, que transgrediram, que se recusaram a entregar o que lhes era esperado - e tenho amado a companhia dessas rebeldes nos meus dias :)
👛 O que era pra ser só mais um vídeo de famosas contando o que tem na bolsa para a Vogue, virou uma mini sessão de terapia com Emma Watson <3 Enquanto mostra a quantidade assustadora de coisas que carrega na sua belíssima mochilinha da Prada, Emma fala um pouco de suas inspirações, práticas de leitura e de escrita, registro de pequenas gratidões diárias e autoconhecimento: “Você não pode estar sempre na fase de semeadura ou sempre na de colheita - a vida tem estações” :)
🧶 As lições de vida que Marisa Monte aprendeu na aula de crochê: “não tente brigar com a linha, que você perde”
tenho dificuldade de sair do script também, mas venho tentando deixar algum espaço para improvisos.
Lindo, Mari. Sair do script e ser mais eu tem me rondado na terapia. <3