À minha frente há uma cobra. Ela se estende pela areia, quase tocando a água, impassível, gigantesca, monumental. Seu corpo se move em ondas lentas enquanto deixa para trás a pele descartada, uma massa disforme e áspera de escamas secas. A cada ondulação, emerge mais reluzente, os tons de cinza se misturando em padrões geométricos na superfície. Move-se quase em sintonia com as ondas que quebram diante de seu corpo esguio. O céu é denso, totalmente tomado pelas nuvens, e o mar, revolto e escuro.
Subitamente me dou conta de que estou em alto mar. Meu corpo se segura com firmeza às bordas da jangada que flutua precariamente para longe da faixa de areia, entregue à correnteza. Há outra mulher diante de mim, muito mais velha, desconhecida. Ela não se agarra às bordas: há uma firmeza intranquila nos olhos, mas sua postura é plácida. Cabelos brancos caem sobre seu rosto queimado de sol e se espalham por todas as direções. Não precisa ter medo, ela me diz, a voz rouca e grave. Trovões ressoam sobre nossas cabeças. Medo de quê, quero perguntar, mas minha voz se recusa a sair. Ela repete: não precisa ter medo. Entre as suas mãos, uma vela acesa, imperturbável diante das rajadas de vento, metade preta, metade branca. Quero perguntar de onde ela veio. Quero perguntar aonde estamos indo. Não consigo formar palavras.
Acordo trêmula, num sobressalto.
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Outro sonho: ando descalça pelas margens de um riacho escuro e estreito. As folhagens e galhos se quebram contra meus calcanhares enquanto avanço pela mata fechada. Homens e mulheres que não conheço também caminham, à minha frente, ao meu lado, à minha retaguarda. Uma cobra esguia e escura reluz em meio ao percurso lamacento, do outro lado do riacho, quase imperceptível, mas eu a vejo e ela me vê, nossos olhos enclausurados entre si. Ela mergulha silenciosamente na água e avança, furtiva, em minha direção. Não a temo: ela me desconcerta, mas me hipnotiza. Há algo para decifrar em seus movimentos, algo que preciso escutar em seus sibilos. Ouço minha respiração entrecortada; sinto uma estranha serenidade em meio à perturbação do desconhecido. Me preparo para receber seu bote de braços abertos, coração atento ao que cabe a ele ouvir.
Um facão empunhado surge à minha esquerda e a atinge em cheio com um golpe limpo, antes mesmo de chegar até mim. Ela se desfaz em escamas e entranhas no ar.
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Um trecho de artigo que anotei em meu caderno, traduzido livremente: “A cobra é um dos arquétipos mais comuns no campo dos sonhos. Embora seja frequentemente associada ao perigo iminente, é na verdade uma poderosa manifestação do imprevisível, da mudança, de uma energia transformadora que está em posse do Indivíduo. Na Psicanálise, é também elencada por Freud como simbologia da energia sexual masculina, do poder, do campo semântico da libido e do desejo inconsciente que emerge da psique humana.”
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“Sabe, eu não vou muito bem das pernas, mas minha visão está melhor do que nunca.”
É a primeira vez que vou visitar minha avó, que recentemente passou por um sério problema de saúde, desde que voltou do hospital, adaptando-se a uma nova realidade. Ela é uma médium forte, há décadas rodeada por seus guias e uma poderosa intuição. Aperta os olhos e os lábios antes de continuar e diz que, quando eu cheguei, uma moça entrou pela porta da frente junto comigo.
Eu peço para ela dizer mais. Como ela é?, pergunto.
“É uma cigana. Bonita, morena, cabelo bagunçado”, conta. “Tá sempre do teu lado. Um monte de brincos, joias. Tem uma pulseira daquelas de apertar no braço, como chama?”
Bracelete, eu digo.
“Isso, bracelete”, diz enfim. “Um bracelete. Todo dourado, com uma cobra enrolada nele.”
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Penso na cobra que se estirava na areia da praia com frequência, como penso em velhos amigos. Ela me causa repulsa e fascínio na mesma medida. Penso em todas as potências descobertas nos últimos tempos, todas as portas e gavetas recém-abertas, todas as vezes em que fui coragem, todos os fardos que enfim não reconheço mais como meus e começo a deixar para trás em um rastro desordeiro. Todos os impulsos e pulsões ainda difusos, formando-se dentro de mim, enchendo-me de vontades antes adormecidas. Medo da mudança, do desconhecido, uma transformação que me amedronta e que me seduz profundamente, em meus desejos mais obscuros: minha odisseia particular.
Ao longe, vejo-a deslizar pela costa, reluzente e livre: sua transformação está completa, e ela espera por mim.
Um beijo,
Mari
Os sons para embalar a edição 🎧
Uma playlist inspirada na edição de hoje, com um pouco de tudo que tem estado nos meus fones de ouvido - para escrever, pensar e viver.
Incrível! Me arrepiei do começo ao fim. Mais me parece uma psicografia de mãe Iansã misturado aos teus insights maravilhosos ❤️ Muito Axé nessa caminhada, e força em todas as transformações que ainda virão - afinal, elas são diárias. Te amo muito.
Me identifiquei um tanto com esse texto que nem imagina.
Ps: A cobra também sempre me acompanha...