Na sessão dessa semana, digo à minha analista em um certo momento: me sinto jovem. E, beirando os trinta anos, tenho plena consciência de que sou. Racionalmente, é isso. Mas o verbo é outro aqui. Não sei: me sinto. Vem à minha boca um impulso de complementar minha própria fala, e acrescento, reformulo: me sinto muito mais jovem do que me sentia aos 18 anos. Havia uma urgência que era fardo, uma urgência que paradoxalmente nos é tão natural na juventude, mas que deixa ares de velhice espalhados pelo caminho; uma sensação de inevitabilidade das minhas escolhas, o sufocamento nos pulsos, no tornozelo, no pescoço: grilhões prendendo-me a elas. O tempo parecia não ter tempo para nada. Hoje, por vezes me parece veloz, mas há dias em que o acho tão vagaroso. Justo. Paciente. Uma correnteza de rio: infinita em seu movimento, constante, consistente. Mas em seu próprio ritmo. Não é o meu - não sou correnteza. Sou vento. Meus movimentos também não se esgotam, mas se dão em todas as direções. Sou vertical, horizontal, faço curvas. Retornos. Dobro esquinas. Lá onde o vento faz a curva. Não haveria como seguir apenas em frente. Talvez envelhecer seja isso: reconhecer nossa não-linearidade e nela sentir que se rejuvenesce. Encontrar as intersecções entre correnteza e ventania, e fechar os olhos para senti-las em sua totalidade. Leio uma reportagem sobre a Turritopsis dohrnii, uma espécie de água-viva considerada imortal, capaz de regenerar qualquer célula do seu organismo. O tempo passa e, ao contrário do que se pensa, a gente vai ficando mais água-viva por dentro: as células se degeneram, mas cada recomeço, cada experimento, cada desejo que nos concedemos, é um renascimento. Os grilhões se rompem, e o tempo nos traz tentáculos - múltiplos, ávidos. Me sinto mais jovem, mais animal-pessoa, menos condenada, menos condição. Agradeço ao tempo pela presença e sussurro a esmo uma prece: poder ser indefinidamente digna do privilégio de ser atravessada por sua corrente - e mergulhar nas profundezas do seu oceano.
Um beijo,
Mari
coisas vistas & lidas
li em dupla com um amigo muito querido Mentiras que contamos, de Philippe Besson (ed. Astral Cultural, 2024, trad. Débora Isidoro) - um romance que por vezes nos parece até mesmo autoficção, que não me agradou tanto em forma e em linguagem, mas é brilhante em retratar a sensação irrefreável de ser jovem, confuso, hormonal (rs) e estar loucamente entregue a um amor proibido, que reverbera através do tempo e da vida. a
, que escreve reviews ótimas na Literalmente, falou dele aqui;As perfeições, de Vincenzo Latronico (ed. Todavia, 2025, trad. Bruna Paroni), foi uma leitura devorada, que inclusive está na recém-divulgada shortlist do International Booker Prize. amei e odiei o casal Anna e Tom, que deixa sua cidade provinciana na Itália para viver o sonho millennial cosmopolita em Berlim, cujo deslumbramento também prova ter um prazo de validade e os leva a um encontro sem retorno com o vazio existencial. não costumo nadar no hype e gosto de escolher livros que estão fora do circuito, mas desse não consegui fugir (ainda bem);
The List, de Yomi Adegoke (no ebook original, ed. Fourth Estate, 2023), não foi das minhas favoritas, mas achei interessante como a autora constrói uma narrativa do "e se?" em tempos de relacionamentos e exposições online e movimentos como o #MeToo. aqui, instaura-se uma tensão entre a reconhecida jornalista Ola, e seu noivo, Michael, quando ele viraliza ao aparecer em uma lista de homens acusados de assédio no trabalho - que ela, por sua vez, tem o dever de investigar e comunicar. um contemporâneo bacana.



nas telas, fiquei vidrada em As Bestas (2022), de Rodrigo Sorogoyen, um thriller genial e de embrulhar o estômago que constrói uma escalada impensável de tensão, ganância, privilégio e vingança entre um casal de franceses expatriados que se muda para o interior da Espanha e seus vizinhos locais;
se eu ganhasse um centavo por cada vez que assistisse a um filme com "besta” no nome, eu não teria muito mais que dois centavos (mas é curioso que tenha acontecido duas vezes nas últimas semanas) - A Besta (2023), de Bertrand Bonello, me envolveu DEMAIS com seu mix de ficção científica, melodrama e terror para contar uma história de amor condenado, que também é uma adaptação lindíssima e apavorante do A Fera na Selva, de Henry James;
O Vale do Amor (2015), de Guillaume Nicloux, perdeu um pouco do brilho depois disso aqui, mas ainda assim vale pela maravilhosa Isabelle Huppert no deserto californiano, ao mesmo tempo apática e à beira de um colapso, em uma busca meio surreal, meio transcendente, de um último contato além-vida com o filho falecido;
Sob a Areia (2000), de François Ozon, tem uma Charlotte Rampling completamente dissociada (fantástica) e segurando-se por um fio entre o imaginário e a realidade quando seu marido desaparece durante um mergulho no mar, mas nunca é encontrado ou dado como morto. inclusive, tem filme novo do Ozon nos cinemas, Quando Chega o Outono - quero muito assistir;
(todos esses estão na MUBI! sou completamente mubidependente SIM)
e para terminar, uma coisa que não é nem filme nem livro, mas é vista e lida (rs) - o curso da
na Seiva, Mergulho na personagem, começou essa semana :) sou muito fã da Aline e já amei tanto a primeira aula! animadíssima para exercitar ficção e tentar tirar algo do papel depois de tanto tempo rascunhando coisas só pra mim.
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Um rio que me varre 🌅
░ A primeira coisa que faço ao levantar é ferver a água para o café. Na verdade, a primeira é passar no banheiro, mas essa é, invariavelmente, a segunda. Ainda sonolenta, deixo o coador no jeito, me apoio no balcão e fico no mais completo silêncio enquanto a chaleira faz seus ruídos e gorgolejos de costume. Não há nada nesse meio-tempo:…
Não é para olhos humanos
Na faculdade de Letras, minhas matérias favoritas sempre foram as do Departamento de Letras Clássicas - Introdução aos Estudos Clássicos, Introdução ao Latim, depois o Teatro Grego, ousei me arriscar até mesmo no Grego Antigo, e foi mais ou menos aí que perdi o controle da minha grade horária cheia de optativas interessantes e nenhum crédito de obrigató…
Amei o texto, Mari! 🤍
❤️❤️❤️✨️