Na faculdade de Letras, minhas matérias favoritas sempre foram as do Departamento de Letras Clássicas - Introdução aos Estudos Clássicos, Introdução ao Latim, depois o Teatro Grego, ousei me arriscar até mesmo no Grego Antigo, e foi mais ou menos aí que perdi o controle da minha grade horária cheia de optativas interessantes e nenhum crédito de obrigatória, e eventualmente acabei decidindo migrar para outro curso, onde não cometeriam o erro de me julgar madura e sensata o suficiente para montar minha própria grade. De todo modo, me pendurei em cada verso recitado na sala de aula, em cada diacrítico, em cada desfecho trágico. Sentia como se estivesse sempre à beira de apreender algo maior ali, para além das palavras, para além das estruturas, algo intangível, mas elevado. Totalmente comprando todo o discurso de superioridade do berço da civilização ocidental e afins, mas, bem, compramos todos. Talvez eu tenha sempre secretamente idealizado um futuro onde eu falaria grego fluente e estudaria textos e artefatos recém-descobertos para ganhar a vida, mesmo embora já não seja mais o que vislumbro - naquele momento, era. Eu queria me sentir elevada e, por algum motivo nebuloso, esse me parecia o caminho mais certeiro para isso.
Em 2023, estive em solos gregos de verdade, em Thessaloniki, destino escolhido um tanto quanto aleatoriamente para esticar uma visita a uma amiga em Berlim. É uma cidade portuária, um pouco caótica e essencialmente bizantina mais do que qualquer coisa. Lembro da sensação de incredulidade diante de absolutamente tudo: os incontáveis cafés freddo e taças de vinho nos bares da orla. As fachadas luminosas em grego, que eu mal conseguia transcrever mentalmente para o nosso alfabeto, mas ainda assim muito satisfeita comigo mesma em todas as tentativas. As baklavas e porções de tzatziki em todas as refeições possíveis. As ruínas ensolaradas e terrosas emoldurando os edifícios e o trânsito barulhento morro acima. Brigas de rua (algumas). Prender a respiração diante dos dezessete séculos de existência do Arco de Galério. Não acreditar ser possível que isso esteja de pé. Não acreditar estar diante do Mar Egeu. No dia em que subimos à pé ao Eptapyrgio, importante fortaleza da região durante o Império Otomano, navegamos a perder de vista por suas escadarias, e encostei a ponta dos dedos com solenidade na escultura de um soldado prostrado em uma das torres, como se para absorver a magnificência contida em si. Que tudo ali continha. Nesse dia, estive muito próxima de me sentir elevada. Fui embora com a sensação de que tudo ali naquela cidade bagunçada e antiquíssima era bonito de uma forma que eu ainda não sabia classificar, e foi essa a palavra que ficou na minha cabeça: bonito. A gente sente esses espaços, ocupa-os, e por um momento se permite reconhecer o milagre que é um lugar cuja beleza sobreviveu através dos séculos. Beleza, monumentos, estruturas - tudo parecia emaranhado, orbitando a essa sensação inominável dentro de mim.






Em La Chimera (Alice Rohrwacher, 2023), o arqueólogo Arthur (Josh O’Connor) tem uma sensibilidade sobrenatural aos mortos e ajuda um grupo de ladrões a encontrar e saquear túmulos repletos de artefatos etruscos na Itália rural dos anos 80. Sua chimera é Beniamina, a falecida amada por quem busca desesperadamente, sem jamais encontrar, nas pontes com o mundo dos mortos. Em um determinado momento, a trupe descobre um templo sob a terra, onde, em um pedestal, encontra-se uma estátua de mármore de uma deusa, perfeitamente preservada, quase que intocada. Pode ser Reia, ou até mesmo Sibila - não sabem, e jamais saberão. Mas Arthur está hipnotizado por seus olhos - um olhar penetrante, diretamente de outro mundo. Tentando movê-la para levar embora, os ladrões decapitam a estátua, o que o perturba profundamente; eventualmente, em uma crise de consciência, ele joga a cabeça decapitada no oceano. Você não foi feita para olhos humanos, ele diz, antes de lançá-la às águas. Rohrwacher evoca o encantamento desses espaços, desses objetos, onde o mundo espiritual é sempre imanente, e nós, vivos, estamos cercados de signos que não sabemos mais ler - evoca, acima de tudo, a visão etrusca do mundo enquanto lugar onde todas as coisas visíveis podem manifestar o divino.
E eu fiquei pensando muito nisso. Nesse encantamento, na chimera de Arthur, nos meus dias em Thessaloniki, na minha obsessão de jovem adulta universitária em querer me sentir elevada com uma leitura bilíngue de Ilíada, e acho que esse texto é sobre isso: sobre buscar o tal do bonito que eu não soube classificar; a beleza que não é feita para olhos humanos, que não é estética necessariamente, apesar de materializar-se na estética - a beleza que é manifestação do divino no mundo físico. A beleza que é tentativa de compreensão metafísica. Que é quimera - que se busca e não se encontra. Que preencheria as lacunas e os vazios. A beleza que é, essencialmente, raiz e semente dos nossos desejos. Beleza enquanto sopro de vida.
Às vezes me pego diante de quadros e instalações em exposições, diante de fotografias em galerias, de mirantes e varandas escondidas pela cidade, tocando as lombadas dos livros em vastas prateleiras de bibliotecas e livrarias, tentando de alguma forma me sentir atravessada por um vislumbre dela. Enquanto esse texto é concebido, em fragmentos, estou quase terminando As perfeições, de Vincenzo Latronico (ed. Todavia, 2025): o casal Anna e Tom deixa sua cidade provinciana natal na Itália para viver o sonho millennial cosmopolita em Berlim, cujo deslumbramento também prova ter um prazo de validade, e, em um certo momento, admitem “a necessidade de uma distensão, um lugar acolhedor onde pudessem se apaixonar de novo pela sua vida". Arriscam-se como nômades digitais em Lisboa, na Sicília, e, "caso se concentrassem em alguns detalhes, experimentavam a possibilidade de voltar a se deixar encantar pela vida, um pouco como quando se experimenta a possibilidade de se deixar levar pelo sono durante a escuridão da insônia". Encantar-se pela vida. Apaixonar-se pela vida. Beleza, encantamento, paixão. Uma rede semântica que preenche os objetos, os monumentos, os espaços, as pessoas que nos rondam e em cujas estruturas buscamos por esse encantamento misterioso, quase onírico, legendário. Eu não tenho mais 18 anos há um bom tempo e já não me encontro numa sala de aula da graduação, ávida por engolir qualquer e toda informação sobre lírica grega, mas estou ávida por tantas outras coisas, e nelas sigo perseguindo este mundo onde as coisas seriam bonitas e divinas de um jeito que não sei classificar. Acho que essa perseguição me dá mais pistas sobre mim do que qualquer outra coisa: tal qual Anna e Tom, consumidos por um vazio existencial em sua odisseia no Mediterrâneo, os objetos e espaços que uso como bússola dão notícias do meu próprio vazio, dos meus próprios desejos - os individuais, os coletivos, os irrealizáveis - e ecoam a minha alquimia, única e exclusivamente minha, para conceber e evocar uma beleza-quimera particular com minhas próprias mãos, feita sob medida para abarcá-los.
Eu já estava meio obcecada com La Chimera e com todo esse remember nostálgico de monumentos e estudos clássicos quando, precisando de um comfort movie certeiro, decidi reassistir pela trilionésima vez Call Me by Your Name (Luca Guadagnino, 2017), onde as estátuas (helenísticas, nesse caso) também têm uma força narrativa para além da composição de cena. Quando Elio e Oliver encontram, junto do professor, o braço de uma estátua de Praxíteles nas cavernas de Catulo, seguram-na com suas próprias mãos, um em cada ponta, e o objeto se torna mediador de um aperto de mãos simbólico entre ambos: um cessar-fogo da tensão, uma cumplicidade que começa a se formar. Em seguida, a estátua completa é descoberta, e Oliver toca a escultura com um certo fascínio, como tocará Elio mais tarde, como quem precisa do toque para crer. Depois, em uma das cenas mais icônicas do filme, eles se circundam ao redor de um monumento de guerra na praça de Crema, separados por sua estrutura; dançam ao redor dele enquanto dançam consigo mesmos, um com o outro, com o que sentem, finalmente confrontando seus quereres e a impossibilidade de tudo: is it better to speak or to die? Em La Chimera, as estátuas fazem a ponte com a morte, com o mundo espiritual e com uma beleza de outrora, aqui, materializam a beleza no tempo presente, a manifestação do divino que se desenha entre Elio e Oliver em tempo real - a atração magnética, o afeto, o desejo. O que seria mais divino do que isso?
Mais do que um conceito ou um qualificador, acho que beleza é um sentimento. Não é desejo, mas algo muito próximo dele. Não é a satisfação de realizá-lo, tampouco. Talvez beleza seja o que antecede tudo isso: o engolfamento catártico que toma conta do peito quando nos permitimos o ato de desejar. Quando, diante dele, o reconhecemos como nosso. Talvez a beleza da qual tanto tentei falar (e não sei se consegui, porque já me perdi do ponto inicial) seja isso: a sensação do desejo dando notícias. E talvez, com isso, eu precise me retificar: La Chimera é sobre morte, mas acima de tudo, sobre vida, mesmo que na tênue linha entre o mundo dos vivos e dos mortos. Em cada túmulo saqueado, Arthur navega incerto nesse limiar em busca de Beniamina, mas o que acaba mesmo por buscar é uma forma de reaver o encantamento que ela concedia a sua vida - mesmo que isso signifique render-se à morte. Ainda assim, é desejo o que lhe move a desenterrar os artefatos, a trazê-los de volta à superfície. É desejo o que lhe faz agarrar-se à cabeça da deusa decapitada, percorrer sua forma marmorizada com os dedos, hipnotizado, e depois libertá-la do seu destino imoral e mundano - para que permaneça intacta como manifestação do divino. Do encantamento. É algum tipo de desejo que me faz correr os dedos pelas lombadas dos livros nas prateleiras, tanto quanto pelas ruínas e monumentos milenares que me encontram em viagens; pela areia quente na praia; pelas taças e copos e garrafas amontoadas sobre a mesa enquanto meus amigos gritam e fumam na calçada; pelas lágrimas que me são arrancadas com um filme extraordinariamente bom na sala do cinema - e me assombro com a energia vital contida na ponta dos meus dedos. Estátuas, líquidos, paredes, páginas pessoas reais: provas físicas que atestam o encantamento à minha espreita. Às vezes, acho que estou muito muito perto de me sentir elevada, de ver a beleza que não é feita para olhos humanos com meus olhos humanos, e quase quero desviar o olhar: me manter suspensa na busca infinitamente. É que desejar, por si só, às vezes é mais legal do que realizar o desejo.
Quando eu comecei esse texto, prometi para mim mesma que não acabaria na mesma conclusão banal de sempre, de que os greco-romanos viviam melhor porque a libido tinha um papel muito mais importante e adequadamente grandioso na sua organização social, mas acabou que meio que virou isso, um grande texto sobre ter tesão na vida, tesão em preencher as faltas, mesmo sabendo que elas sempre se farão presentes, uma epopeia com um desfecho eternamente em aberto. Shit, it's good to be alive.
Um beijo,
Mari
referências citadas por aqui:
1. La Chimera, Alice Rohrwacher. Itália, 2023. Disponível na Mubi ;)
2. Call Me by Your Name, Luca Guadagnino. Itália, 2017. Disponível na Netflix
3. As perfeições, Vincenzo Latronico. Ed. Todavia, trad. Bruna Paroni, 2025
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