Tem um monstro debaixo da minha cama. Nunca vi com meus próprios olhos, mas sei que tem. Eu sinto o peso de seus movimentos sob o estrado e o colchão durante a noite, sua respiração sincronizada à minha. Sinto sua pressão esmagadora rastejando pelos meus pés, pernas, pela minha espinha dorsal, alojando-se na minha nuca. Sinto seu olhar censor me vigiando, me julgando, mesmo fora do alcance da minha própria vista. Ouço suas palavras duras ao me deitar. Ouço-as ao acordar também. Elas me acompanham durante o dia, dosam minhas decisões, medem meu reflexo no espelho. Tem algo debaixo da minha cama: alguém me disse que era um monstro, e eu acreditei, acredito desde então. Mas talvez não haja nada - talvez seja a minha própria dureza na voz que ouço, minha própria censura que me sinto observar, o peso dos meus próprios fardos incrustados no corpo. Eu não tenho provas, apenas minha cega confiança em qualquer faro que não seja o meu. Eu nunca vi com meus próprios olhos porque nunca ousei espiar.
🛌
Todas as vezes que tento especular sobre o que mora aqui, no fim das contas, as palavras se esvaem. Elaboro no vazio. Perco o compasso da pronúncia, não sei falar. Nunca pensei que estaria tão pouco familiarizada com as palavras neste momento, neste de questionar a existência dos meus monstros, ainda menos familiarizada do que quando aceitei-a. É curioso. Acho que é porque qualquer conjectura que ultrapasse o momento da aceitação abstrata, qualquer que seja, pressupõe que este monstro tem forma, contorno e nome, e que dar-lhe lugar definido no mundo também o remove, à força, do pedestal inalcançável em que o conheci - e me abre a possibilidade de destituí-lo desta posição de chefia da minha vida. Destroná-lo. Exonerá-lo. O alívio que também aterroriza. Se não me ocupar de responder a ele, respondo a quem?
Qual é a pior coisa que você acha que pode acontecer, minha analista me pergunta, se você deixar de se ocupar, só por um minuto, de atender às demandas que não são suas? Eu não consigo pensar em nada que seja verdadeiramente horrível nem trágico, e tampouco consigo engolir o fato de nunca ter me feito esta pergunta antes. Uma obediência cega. Acredito na existência dos meus monstros invisíveis debaixo da cama com a mesma intensidade que acredito no poder avassalador do Outro. É tudo muito parecido com o que ela já me disse, em outros momentos, sobre dizer nãos. Eu ensaio sua prática, mas eventualmente me recolho aos braços do ato de obedecer outra vez. Quanto mais puxo essa corda infinita, mais percebo que circulo incessantemente os mesmo temas. Será que estamos fadados a isso? A encontrar nossas verdades universais e a tecer, através do tempo, um universo semântico e simbólico em torno delas? Se essa é a minha verdade universal, o que eu faço com ela? O que faço, se todos os meus movimentos têm sido ensaios e tentativas de desacreditar, descredibilizar - de desconfiar?
O que faço com a minha verdade universal senão duvidar dela?
🛌
Cada vez mais convencida de que nada tangível jamais morou debaixo da minha cama, me deito e escuto o mais profundo silêncio. Ele me perturba ainda mais do que o som da presença. Sou acometida por uma opressora dor no peito, por uma náusea persistente, por todos os velhos conhecidos sinais de uma crise de ansiedade. Custo a pegar no sono, um sono turbulento, preenchido por maus presságios. Meus costumeiros sonhos com cobras tomam uma guinada perigosa: há uma grande caixa de papelão diante de mim, lacrada, e quando a abro, o animal que me cuida e me acompanha está de olhos cravados em mim, pronto para um bote. Acordo ainda nauseada, com o peito ainda apertado - é o peso da minha própria tirania, percebo, uma soma de obediências que já não podem mais se sustentar. A comida desce aos solavancos. Ligar o notebook para trabalhar me parece uma tarefa bizarra, esdrúxula, completamente fora do meu raio de alcance. Eis aqui uma desobediência ao meu próprio código de conduta: pedir ajuda. Com as mãos levantadas, enfim, me permito não prometer absolutamente nada por um dia, e não entregar nada mais do que prometi.
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Recusei um convite de jantar e, ao invés de inventar uma desculpa, arrisquei um porque não estou afim. Abri uma garrafa de vinho numa segunda-feira. Abandonei um livro na metade. Alguém no trabalho me perguntou se eu podia ajudar em um projeto, e eu disse que não daria conta. Pulei o treino para ficar até mais tarde na cama. Pela primeira vez, no consultório da minha ginecologista, me permiti contemplar de verdade a possibilidade de uma vida sem maternidade. Contei um segredo que não era meu. Resolvi deixar um caderno na mesa de cabeceira, com uma caneta por perto, e nos momentos de paralisia diante do silêncio recém-descoberto, mantenho sempre atualizada uma lista de desobediências, pequenas e grandes, em todos os graus de importância. Às vezes, quando não tenho nenhuma a acrescentar no papel, apenas contemplo tudo que já incluí, e algo se desloca dentro de mim com um pouco mais de suavidade. As palavras voltam a ser minhas, afinal.
🛌
É uma versão de mim, reconheço, que mantive em cativeiro por todo esse tempo debaixo da cama. Sua respiração não é a minha, levemente em outro compasso, mas ainda assim o é. Ela me aterroriza mais do que qualquer outro monstro que minha imaginação poderia elaborar. Guardo-a ali, debaixo da cama, com tudo que escolhi desconhecer. Guardo minhas desobediências, minha rebeldia, que dificilmente deixo que veja a luz do dia. Debaixo da cama não há mais espaço para ela, talvez. Ultimamente, tenho me sentido inclinada a espiar, mesmo sabendo que o reconhecimento é irreversível, mesmo sabendo que o momento de olhá-la nos olhos vai exigir que eu lhe dê um lugar fora das sombras. Ainda assim, ensaio o encontro, como quem ensaia um primeiro beijo. Ver com meus próprios olhos, confiar no meu próprio taco: talvez seja a insubordinação mais preciosa de todas.
Pela desobediência e revolta.
Simplesmente me senti abraçada com teu texto! E adorei a entrevista com a Patti :)