Acho que eu tĂŽ pifando. NĂŁo Ă© grande coisa; todo mundo que eu conheço estĂĄ. TambĂ©m estou. Com um tambĂ©m na frente parece que fica menos pior. Tenho dormido pouco, me desconcentrado muito, procrastinado tarefas de todo o tipo e atĂ© este presente momento de digitar palavras em uma tela em branco, tenho ouvido os ĂĄlbuns do Radiohead com uma frequĂȘncia alarmante - isso nunca Ă© um bom sinal na vida. Enquanto escrevo, tento puxar o ar seco de outono (mas eu prometi para mim mesma que nĂŁo ia mais reclamar de condiçÔes climĂĄticas em 2023) pelo nariz sem sucesso, a gripe que vem pra esculhambar mais do que jĂĄ estou. Tombada, mas sem nenhum valor histĂłrico.
Durante a Ășltima reuniĂŁo de ontem, uma colega disse coitada, que voz de doentinha. Sim, eu pensei, coitada de mim. Em uma negociação silenciosa comigo mesma, me autorizei a sentir um breve instante de pena de mim, um breve instante de aceitação da legitimidade do meu desconforto. Breve demais. Coitada de mim, pensei, mas o que disse foi: nĂŁo, tĂĄ tudo bem!, com exclamação e sorriso e tudo, e coloquei no mudo para puxar o catarro pelo nariz. SimbĂłlico. TĂĄ tudo bem! O apartamento que comprei com meu noivo estĂĄ em reforma e, apesar de toda a magia que nos envolve nesse momento tĂŁo esperado, isso segue se traduzindo em imprevistos diĂĄrios, gastos que jĂĄ estouraram o orçamento total e muitas idas nĂŁo planejadas Ă Leroy Merlin. TĂĄ tudo bem! Semana passada, consegui realizar a proeza de me trancar no banheiro de casa (sim) e precisei sair pela janelinha, o que normalmente teria rendido risadas infinitas, mas ao conquistar minha liberdade, me sentei diante do notebook e chorei, rendida. TĂĄ tudo bem! Em uma festa de aniversĂĄrio recente, eu e meus amigos entramos em um vĂłrtex de assuntos profundos, daqueles que acontecem quando todo mundo jĂĄ estĂĄ muito bĂȘbado e passou da hora de ir embora, e eu tive um acesso de choro incontrolĂĄvel quando cheguei em casa, tomada pelo arrependimento. Tudo em que eu conseguia pensar eram os pequenos pedacinhos de mim mesma que ofereci na roda de conversa, pedacinhos das minhas fraquezas, dos meus medos, pedacinhos que ofereci sem pensar e nĂŁo poderia mais tomar de volta. TĂĄ tudo bem.
Pedir ajuda, para mim, sempre foi um sinĂŽnimo de deixar vulnerabilidades Ă mostra, e de certa forma continuo enxergando verdade nessa associação, mas me perco no desespero por escondĂȘ-las. Ter controle sobre a minha narrativa sempre me pareceu muito fundamental. E mesmo estando aqui, neste momento, exercitando a sinceridade diante da tela, eu ainda estou buscando por esse controle, oferecendo meus pedacinhos em um espaço seguro e calculado, onde eu escolho as palavras, eu dito as regras do jogo. Quando me dou por mim, jĂĄ nem Ă© mais sobre apenas maquiar as rachaduras - Ă© sobre desenhar os contornos de uma fortaleza impenetrĂĄvel que nĂŁo existe e me isola do mundo.
Acho que nĂŁo consigo mais sustentar essa narrativa de força inesgotĂĄvel que criei, disse Ă minha analista na Ășltima sessĂŁo, tĂŽ completamente perdida no personagem, e rimos, talvez de nervoso, mas Ă© nisso que tenho pensado. Nas rachaduras. Nos pequenos Ămpetos de revelĂĄ-las, de me enxergar falha, de me conhecer e reconhecer nesta condição. Nos votos de confiança, na coragem de me permitir caber nos braços que se estendem para mim. Na coragem de continuar oferecendo os pedacinhos, mesmo sabendo que Ă© irreversĂvel, mesmo sabendo que, Ă s vezes, vai continuar se assemelhando a um passo em direção ao abismo. HĂĄ uma rachadura em tudo - Ă© assim que a luz entra. Tudo Ă© processo. Por hoje, ele se parece com isso, com encher a boca para dizer: acho que nĂŁo consigo. Ou: nĂŁo tĂĄ tudo bem. Sem exclamação nem sorriso.
(Mas pra puxar o catarro pelo nariz vou seguir colocando no mudo)
Um beijo,
Mari
â Tudo que eu quero Ă© chorar e ver a minha novela em paz. A
resumiu o mood.â Um trem em movimento, mais uma edição que amei da
!â Viajar sozinha e amadurecer, de uma querida amiga viajante que agora tambĂ©m Ă© Substacker.
â Patti Smith falando sobre Rimbaud.
â As maravilhas, de Elena Medel, Ă© a minha leitura do momento, e estou amando acompanhar sua narrativa tĂŁo crua e ao mesmo tempo tĂŁo sensĂvel sobre gĂȘnero e classe.
â TambĂ©m estou de olho (e o cartĂŁo de crĂ©dito tĂĄ como?) nestes aqui para prĂłximas aquisiçÔes: Ioga, de Emmanuel CarrĂšre, Cinco terças de inverno, de Lily King, e Ăxtase e outros contos, de Katherine Mansfield. Quem aĂ jĂĄ leu?
â Essa edição nĂŁo poderia terminar de outra forma senĂŁo com a minha mĂșsica favorita da musa das musas, Rita Lee. VocĂȘ Ă© eterna, gĂȘnia. âĄ
Sei exatamente do que vocĂȘ estĂĄ falando em relação ao arrependimento de compartilhar seus pedacinhos. E acho que as pessoas que chegam falando que estamos com cara de cansada poderiam ser mais discretas, ou chegar oferecendo ajuda. Isso sempre me deixa meio chateada, mesmo que seja verdade.đ
Eu amo seus textos!