Fábio e eu nos levantamos da mesa onde acabamos de almoçar, uma tarde de domingo regada a risadas e cervejas, para começar a rodada de tchaus e abraços com os familiares. Uma delas me dá dois beijinhos no rosto e me encara por trás dos óculos meio embaçados, as mãos com unhas compridas me detendo, fervorosas, pelos ombros. Fico tão feliz de ver que você emagreceu, ela diz. Eu agradeço, sem jeito, mas saboreando um pequeno e secreto prazer, pois emagreci mesmo, a custo de muito sacrifício. Eu fico feliz mesmo, ela continua, porque você já estava ficando com uma coisa aqui, ó - e passa os dedos pela própria papada -, e você é tão jovem pra isso. Meu desconcerto é tamanho que só consigo sorrir e assentir, em silêncio. Os vestígios de prazer desaparecem e dão lugar a uma angústia imensa, sufocante, um medo tão grande quanto o de nem conseguir emagrecer em primeiro lugar: o medo de cometer deslizes. A descoberta aterrorizante de que, para me manter magra, eu não posso jamais engordar novamente.
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No Instagram, notícias por todos os cantos sobre uma influenciadora que vem a falecer após complicações em uma lipoaspiração no joelho. Os comentários são variações da mesma sentença: uma mulher linda dessa. Uma mulher magra dessa. Não precisava de lipo, morreu por nada. Não precisava. Neste regulamento, existem as que precisam. As que poderiam morrer por algo. Eu não consigo evitar me perguntar em que categoria me encaixo.
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Gostaria muito de não querer ser magra. Penso nisso enquanto estou deitada na maca de uma das salas da clínica estética que frequento, com um aparelho de sucção acoplado ao meu abdômen, congelando a gordura localizada. São quarenta e cinco minutos de sessão, e não há muito a se fazer além de ler o livro que trouxe comigo, mas não posso me deitar de bruços nem de barriga para cima, apenas ficar nessa posição cretina, de lado, apoiando-me desconfortavelmente no aparelho, então tudo que me resta é pensar sobre o que constitui esse momento. Gostaria muito de não querer ser magra. Mas quero. Às vezes consigo não querer por um breve tempo, ou, pelo menos, não pensar no querer. Gostaria de me constituir às margens desse código. Mas me pego lutando contra minha própria estrutura. Emagreço, mas meu corpo é naturalmente largo - os ombros, os quadris, as coxas. Onde poderia ser côncava, transbordo. Emagreço, mas meu metabolismo é lento, não me deixa descansar. Não é apenas sobre emagrecer: é também sobre ser naturalmente magra, esguia, fluindo sem esforços pelos contornos dessa beleza imaculada que é direito de nascença. Emagreço, mas esse campo semântico simplesmente não se traduz em minha língua. Não sou capaz de falar.
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Tenho consciência da armadilha. Ainda assim, me permito ser capturada. Presa em suas estruturas metálicas, debato-me para alcançar o que está fora do meu alcance: este ideal de beleza feminina, sorrateiro e transmutável, mais irresistível e diabólico do que o canto de uma sereia. Tenho consciência da armadilha. Mas não consigo me desvencilhar dela. Às vezes me vejo capaz de libertar um braço, quiçá um tornozelo. Liberto-os com sofreguidão, ofegante, e contemplo os arranhões e marcas que se fazem no caminho. Pedaços resgatados que não fazem um todo, mas libertos em sua incompletude.
Me contento com uma meio-liberdade, um regime semiaberto, e desisto também desse (outro) ideal igualmente remoto: o de se desvencilhar completamente da armadilha. A quem eu quero enganar? Sou humana, eu também faço parte do culto à beleza, eu existo nessa estrutura, me prostro diante dela e peço por suas bênçãos; estou também entregue a essa escalada interminável, e idealizar uma versão de mim que se abstém totalmente da escalada, elevada e iluminada por algum tipo de revelação espiritual, é tão utópico quanto idealizar uma versão que chegou ao topo da montanha.
A perspectiva de conquistar um lugar no hall das mulheres perfeitas, que pontuam impecavelmente dentro deste índice rigoroso, é sedutora demais para ser ignorada. Desprezo-a, mas ela existe assim mesmo; luto contra o desejo, mas ele cria raízes por dentro. Ao passo que compreendo o mecanismo, sou também atravessada por ele.
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Já deixei de ser sedentária há anos, mas o exercício físico sempre teve um quê de penitência. Se não acontece, sua ausência desce pela garganta com a acidez da culpa; se acontece, deve obrigatoriamente entregar um resultado muito específico. Compensação. Mas algo vem mudando, lentamente, nessa relação um tanto turbulenta: quando mudei de bairro, acabei por me matricular em uma pacata academia perto da casa nova, zero frequentada pelo público marombeiro performático, fator que sempre me gerou uma relutância (e desconforto) em frequentar os ambientes de academia. Foi aí que aderi à musculação, atividade que sempre achei um tanto tediosa, mas que passei a apreciar.
Na insistência de continuar me movimentando, puxar os pesos tornou-se rotina, assim como os quilômetros corridos ou pedalados. Com o passar das semanas, começo a reconhecer braços mais fortes, pernas que aguentam andar mais tempo. Subir ladeiras. Tornou-se natural beber mais água, dormir mais. Na rodada de exames recentes, colesterol reduzido, taxa de ferro no sangue fora do risco de anemia pela primeira vez em anos. Cada vez menos crises de dores da endometriose. A gente tá cansada de ouvir que cabeça e corpo estão conectados, mas estão. Enxergar a extensão da minha força foi um momento catártico, um momento que segue se desdobrando e acontecendo em pequenas ocasiões, e que me permite transcender a sombra censora e autoritária do emagrecimento obrigatório ao mexer meu corpo. Alguns dias, com mais sucesso; outros, com menos. Na semana passada, olhei-me no espelho após o banho e não consegui desgrudar os olhos das incontáveis falhas e excessos que encontrei, e me senti completamente derrotada; nessa semana, aumentei a carga dos exercícios e pela primeira vez corri por meia hora, sem intervalos, sem caminhar, com um prazer muito específico ao sentir o suor escorrendo, circulando por mim: o de dar-se conta de que meu corpo é capaz de fazer coisas muito daoras, independente de seu percentual de gordura, que diminui aos persistentes sacrifícios, mas ainda alto para os coaches e nutricionistas de performance. A magra falsa, é o que ouvi da última vez.
Não importa. Ainda que inconstante, é um espaço para enxergar a superfície do que normalmente apenas me inunda. Poder emergir e pegar fôlego às vezes. O braço, o tornozelo, libertos da armadilha.
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Eu gosto de sentir que meu corpo se transforma. Gosto de enxergar meus próprios atravessamentos nessas transformações. Me exige toda a energia que tenho, desvincular suas reviravoltas da demanda de estar constantemente encolhendo, me exige toda a energia e às vezes ela não é suficiente. Com o tempo, me pego querendo um pouco menos, ou talvez não querendo tanto o tempo todo. É este compreender que altera a dinâmica: o de que os códigos sociais que alimentam a estrutura desse desejo têm uma força independente, mas que há espaço para o exercício de não querer o que ele quer que queiramos. Para reconhecer o cuidado que precisa se fazer existir, mas que não serve às regras deste jogo sagrado. Não é uma recusa, não é uma aniquilação: é enxergar que jogamos o jogo, mas que podemos escolher perder - e assumir as consequências da perda, ao invés de ocupar este lugar inescapável do combate pela vitória que simplesmente não existe.
Eu não sei dizer se meu corpo é um templo ou um parque de diversões, mas estar na fronteira já me parece uma espécie de libertação. Às vezes, uma montanha-russa que desemboca em uma capelinha; em outras, um santuário com atividades recreativas. Quando der, aproveitar a viagem. Quando não der, fazer-me morada para me acolher. Escalar pela escalada, pelas métricas que não se medem na balança. Escalar atenta ao ato de escalar.
Um beijo,
Mari
Os sons para embalar a edição 🎧
Uma playlist inspirada na edição de hoje, com um pouco de tudo que tem estado nos meus fones de ouvido - para escrever, pensar e viver.
Também queria muito não querer. Queria me sentir completa como sou, sem tirar nem por valor de acordo com o peso na balança. Mas infelizmente quero, porque o mundo lá fora já implantou esse chip há muito tempo. Quem pergunta o por quê da menina magra fazer lipo é porque não entende essa pressão. Não ressinto, só consigo pensar que deve ser muito bom não entender. A ignorância é uma bênção, não é assim que dizem? Nesse caso, é super.
que texto 🫀